Foi um dia, 23 de Setembro de 1979, foram dias seguintes, largos dias de amargura, de revolta, de raiva, de incompreensões, de injustiças, mas quiçá também de construção de esperanças e caminhos novos para muita gente. Certamente nenhum jornal se recordará disto, nenhum telejornal se preocupará com os factos de então, nenhuma entrevista se fará com a data e os acontecimentos. Ficarão apenas os poucos registos da época e um ou outro ulterior escrito pouco badalado.
Mas eu lembro-me, devo lembrar-me, sem rancores, sem ódios, alguma mágoa seguramente. Lembro-me hoje, como me lembro muitas vezes, da morte de Cau, de cenas e comportamentos sombrios, sinistros, da heroicidade de Dave, dos «noticiários» diários ao fim da tarde na Praça, através de um megafone maroto, e do resto. Do silêncio e dos silêncios. Do medo mas também de gestos solidários e corajosos, de enorme coragem física e moral. Lembro-me de que não demorou muito tempo para que me convertesse, até hoje, aos valores da liberdade (liberdade, sempre) e da democracia.
Mas fico por aqui. Estas linhas singelas dedico-as à família de Cau, à lembrança de Nhô Samuel da Furna, ao Dave Barros (verdadeiro herói e resistente), à Dulce, ao Maica, à Ana Morais e à filha, ao Johnny Teixeira, ao Miguel e a tantos outros. Igualmente aos então muito jovens Arnaldo, Alfredo e Júlio que, já no Fogo, três semanas depois, nos consolaram e estimularam durante a «escala» para a Praia.
Deixo aqui como testemunho de uma lembrança já distante, estes versos ingénuos escritos com os meus 28 anos da altura:
HOMOFONIAS DA ARITMÉTICA
ou
AS ATRIBULAÇÕES DA BRAVA ILHA DA SOLIDÃO E DA DOÇURA ESMAGADA PELA ANEMIA
os sons agourentos
eu
a hipotética ave
a morte doce
tu
esta dor turva
uma prisão recauchutada sorri para a fotografia +
subverto logo existo
uma palavra solta desinibida
mas por que terá a onda que quebrar
se o mar é tudo menos tolo e submisso?
ananinhanäo
morrer eu antes morra o patrão +
existo logo resisto
o tecto nublado numa paisagem de verde envergonhado
a ilha mansa rebelando-se uma vez todos os dois anos
a paixäo instantânea sem sequer tempo de um beliscão +
sorriem os girassóis logo existimos
um inquérito embriagado
a polícia...oh! a polícia
a missa o violino o pescado corcunda de tanta ladeira +
näo há tempo para um instante de amor
a lua sorridente
a grade marota
o tudo ou nada
o amor permanente
a subversäo transparente +
cinco tempos de uma demência necessária
Jorge Carlos Fonseca