23 de Setembro - O dia em que a Brava conheceu a opressão do Partido Único
Começou com um jogo de futebol. Escalou para uma acção violenta que provocou uma morte. Continuou com torturas e prisões. E tinha um alvo político bem definido: o actual Presidente da República Jorge Carlos Fonseca, na altura afastado do PAIGC no seguimento da purga dos trotskistas.
Começou com um jogo de futebol. Escalou para uma acção violenta que provocou uma morte. Continuou com torturas e prisões. E tinha um alvo político bem definido: o actual Presidente da República Jorge Carlos Fonseca, na altura afastado do PAIGC no seguimento da purga dos trotskistas.
Começou com um jogo de futebol. Escalou para uma acção violenta que provocou uma morte. Continuou com torturas e prisões. E tinha um alvo político bem definido: o actual Presidente da República Jorge Carlos Fonseca, na altura afastado do PAIGC no seguimento da purga dos trotskistas.
Foi o próprio Chefe de Estado quem começou por recordar o dia 23 de Setembro de 1979 na sua página no Facebook. O acontecimento político “amargo, triste, violento, que deixou marcas seguramente no tempo que se seguiu. Tenho pensado que podemos e devemos perdoar, mas não podemos esquecer”.
Foi o dia e foram dias seguintes, nas palavras de Jorge Carlos Fonseca, “largos dias de amargura, de revolta, de raiva, de incompreensões, de injustiças, mas quiçá também de construção de esperanças e caminhos novos para muita gente”. “Eu lembro-me, devo lembrar-me, sem rancores, sem ódios, alguma mágoa seguramente. Lembro-me hoje, como me lembro muitas vezes, da morte de Cau, de cenas e comportamentos sombrios, sinistros, da heroicidade de Dave, dos «noticiários» diários ao fim da tarde na Praça, através de um megafone maroto, e do resto. Do silêncio e dos silêncios. Do medo mas também de gestos solidários e corajosos, de enorme coragem física e moral. Lembro-me de que não demorou muito tempo para que me convertesse, até hoje, aos valores da liberdade (liberdade, sempre) e da democracia”.
Estas foram as palavras do Presidente da República. A partir daqui, e com a ajuda de testemunhos e da história de Cabo Verde, o Expresso das Ilhas reconstruiu os eventos desse dia 23 de Setembro de 1979, dos dias que se seguiram e o que esteve por trás de tudo o que aconteceu.
Era um domingo à tarde na tranquila ilha da Brava. Dia de futebol, melhor ainda, de derby entre as equipas da Furna e de Nova Sintra, programação desportiva da melhor para o fim-de-semana. A lotação estava esgotada e alguns adeptos mais fervorosos pensaram ludibriar a segurança tentando entrar com bilhetes falsos. Foram detectados e receberam voz de prisão. A caminho da cadeia, o polícia responsável começou a bater nos indivíduos, segundo testemunhas, aparentemente sem nenhuma razão.
Um jovem, Cau, ao ver a prepotência do responsável policial ripostou, disse que não havia razão para aquela atitude, uma vez que ninguém estava a oferecer resistência e estavam a cumprir a ordem de prisão.
O responsável policial, um indivíduo que, dizem as testemunhas, tinha desabafado anteriormente que não sairia da Brava sem antes matar alguém, voltou-se para o Cau e atirou duas vezes, nas pernas, com a sua pistola de serviço. Cau não resistiu e caiu de joelhos. Ao mesmo tempo levantou as mãos, rogando ao polícia que parasse de atirar. Este, sem hesitação, apontou a arma para a testa e disparou mais duas vezes, entre os olhos, causando a morte imediata do jovem.
David Barros, o Dave, estava em Nossa Senhora do Monte, em passeio com alguns amigos. Quando soube o que aconteceu veio de imediato para a Vila e visita o defunto no hospital.
Ao Expresso das Ilhas, via mail, conta que “para o nosso espanto, o acontecimento foi noticiado na radio nacional às oito da noite, dando conta que o policia defendeu-se frente a um karateca e que a morte foi um acidente trágico. O relato foi uma fabricação diabólica que enraiveceu toda a população que presenciou o facto”. A notícia espalhou-se por toda a Brava, de todo o lado, as populações prontificaram-se a protestar, pedir justiça e repor a verdade dos factos.
“O responsável do partido na Brava foi injusto com os familiares e com a dignidade dos bravenses ao declarar que o polícia foi desarmado com um pontapé do karateca, e este teve de recorrer à arma para se defender. Disse ainda que em vez de se disparar para o Cau, disparou para o chão e que a bala ricochetou atingindo o malogrado na cabeça”.
Dave Barros e outros dirigem-se à Furna para mobilizar a população para um protesto no dia seguinte, uma marcha silenciosa e pacífica, para pedir justiça e exigir que o polícia fosse expulso da Brava. “Aceitei liderar a manifestação entre outros colegas estudantes de férias na Brava. Tivemos apoio do padre da igreja católica de então, que disponibilizou o microfone. Começámos o desfile, gritando em uníssono: Nu kre Justiça, Assassino fora…”.
Apesar de David Barros ser um militante “ferrenho” do PAIGC, tendo mesmo ajudado à introdução do partido na Brava, o responsável do partido na ilha não gostou das reivindicações. Chegou a aparecer para impedir a manifestação e prender Dave, mas as centenas de pessoas presentes impedem-no de o fazer. Terminada a marcha, David Barros recebe então a ordem de prisão e é obrigado a apresentar-se no posto policial. É o que faz. Na polícia presta declarações e explica que se limitaram a um protesto contra o assassínio de Cau e contra a notícia falsa divulgada na radio.
Deixam-no sair, mas o pior estava para acontecer. Quando saiu da polícia, e ao chegar à praça, de Vila Nova Sintra encontra, por acaso, Djik de Oliveira, seu professor, e Jorge Carlos Fonseca, ambos de férias na Brava, que lhe perguntam porque tinha sido preso.
O resto é contado por Dave: “os agentes pides de então comunicaram ao responsável do partido e logo de seguida, quando já tinha chegado a casa, fui novamente intimado a comparecer no posto policial porque tinha de prestar declarações que, segundo eles, estava a esconder. Disseram-me que sabiam de antemão que a manifestação tinha sido organizada por alguém e eu tinha de confessar, caso contrário não me iriam libertar. Fiquei preso e no dia seguinte, à meia-noite, depois da luz se ter apagado (a luz na Brava nessa altura ia até às 24h) vieram buscar-me na cela para ir confessar”.
“Como não disse o que queriam ouvir, o comandante Costa, responsável e carrasco policial na Praia e conhecido de todos, disse para os polícias e melícias: Nhos libra so cabeca e nhos pol papia. Dois polícias começaram a bater-me por quase uma hora e eu a gritar… Pararam para me interrogar e depois voltaram a bater-me continuamente… Quando viram que não tinham sucesso, receberam voz de parar, para continuar no dia seguinte”.
“Entre os insultos e as acusações ouvia o Costa dizer: estás armado em herói do povo, em não trair o juramento ao vosso mestre, mas vamos fazer-te falar. Puseram-me a dormir no cimento e no outro dia, como o meu corpo estava todo inchado, receberam ordem de não me bater mais. Até que recuperasse”.
“Viram que não conseguiam os seus desejos diabólicos e chamaram o meu pai para me dar conselhos. Disseram ao meu pai que eu estava a sofrer porque estava a esconder a verdade. Que me libertariam assim que eu dissesse a verdade…que quem organizou a manifestação era o Jorge Carlos Fonseca. Respondi ao meu pai que podiam espancar-me até à morte mas nunca iria mentir e dizer menos verdade só porque queriam ouvir isso da minha boca”.
1979 representou o culminar da guerra aberta aos trotskistas dentro do PAIGC. Uma luta que tinha começado logo após a independência. A juventude dos elementos conotados como trotskistas, não lhes permitia lançarem-se em grandes voos na disputa do poder e deixava-os expostos a uma certa manipulação dos mais velhos e experientes.
Esse combate teve vários episódios, como os choques nas reuniões da Comissão Nacional de Maio de 1976, a remodelação ministerial de Janeiro de 1977 e, por fim, o desenlace final em Março/Abril de 1979.
Como refere Humberto Cardoso no livro O Partido Único em Cabo Verde o comunicado do Conselho Nacional de Cabo Verde do PAIGC, de 5 de Abril de 1979, dá uma visão global do conflito, das suas origens e desenvolvimento e do que realmente era a sua motivação. Assim, logo no primeiro parágrafo, o cenário histórico-político é criado: “Com o reforço da acção do Partido em Cabo Verde, que se seguiu à queda do fascismo em Portugal e marcou o termo da fase clandestina da nossa luta de libertação nacional, tornou-se evidente a existência, no seio do partido, de elementos cujo comportamento político se afastava da linha do PAIGC”.
Para dissimular a sua própria conspiração contra a estrutura do partido em Cabo Verde e a sociedade cabo-verdiana, o “clã” dos combatentes fomentou, desde do início, a teoria da conspiração dos antigos estudantes em Portugal, que tinham, em 1974 e 1975 ascendido a posições de destaque na estrutura partidária. A teoria da conspiração “trotskista”, insinuada aqui e além desde 1974, é exposta em todos os seus pormenores no comunicado do CN atrás citado: Origens - “... elementos, todos eles antigos estudantes em Portugal onde integraram estruturas clandestinas do Partido...” Conexões - “...o grupo trotskista identificado no Partido foi constituído essencialmente por elementos ligados a organizações estrangeiras e infiltrou-se nas estruturas clandestinas do Partido em Portugal, na fase final da Luta de Libertação Nacional...” Objectivos - “...consolidar a fracção trotskista no seio do Partido numa tentativa de progressivamente apossar-se do poder...” Métodos - “...assentarem o seu controle sobre a organização partidária nos diversos escalões...” [e] “...servindo-se das estruturas do Partido, gradual e sub-repticiamente o desviarem da sua linha ideológica...”. [Também] “... faziam circular boatos e calúnias a respeito dos dirigentes e militantes vindos da frente da luta armada...”
O grupo, identificado como trotskista, incluía ex-estudantes em Portugal e outros jovens que, em Cabo Verde, após o 25 de Abril se evidenciaram no movimento popular desencadeado. Do grupo, salientaram-se os seguintes: José Luís Fernandes, membro do CNCV, membro da delegação do PAIGC às negociações em Lisboa, responsável de Ideologia e Secretário de Estado da Função Pública e Trabalho (1977-79); Manuel Faustino, membro do CNCV, Ministro de Educação (1975) e Ministro de Saúde (1975-79); Amaro da Luz, membro do CNCV, membro da delegação PAIGC às negociações em Lisboa e Ministro de Finanças (1975-76); José Tomás Veiga, membro do CNCV, responsável político em Santiago e secretário de estado das finanças (1977-1979); Cândido Santana, membro do CNCV e responsável político de Santiago; Sérgio Centeio, membro do CNCV e Ministro da Agricultura e Águas (1975-76); José Eduardo Barbosa, membro do CNCV e responsável político de São Nicolau e Fogo; Eugénio Inocêncio, membro do CNCV e responsável político por Sto. Antão, São Vicente e Sal; Jorge Carlos Fonseca, Secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros; Érico Veríssimo, director nacional de informação.
Pedro Martins, no seu livro Testemunho de um Combatente, descreve a divisão entre os jovens militantes e a manipulação a que foram sujeitados: “Os militantes da resistência interna, que não pertenciam ao grupo dos trotskistas e sobretudo os que não tinham nem familiares nem amigos na cúpula do Partido que veio de Conakri, foram os maiores alvos do oportunismo político que se instalou depois do 25 de Abril. É oportuno lembrar que muitos daqueles que sofreram a prisão e a tortura da PIDE foram afastados de uma maneira ou outra da organização política, e nem sequer seriam convidados a participar nas comemorações da Independência...
...pouco a pouco esses militantes foram tomando a consciência da situação de desrespeito a que eram votados, da sua subjugação a interesses de oportunistas, e também das suas potencialidades no seio do Partido. Resolveram então desarticular a força dos trotskistas que em Santiago tinham a maior implantação. De facto, a partir de 1976 os quatro sectores do Partido e a organização de Juventude ficariam fora do seu controle ideológico. Essa actuação viria pressionar a cúpula do Partido a buscar uma solução para o divisionismo reinante que chegou a ponto de travar o funcionamento partidário na ilha de Santiago durante meses...”.
No III Congresso do PAIGC, realizado em Novembro de 1977, dá-se o golpe final com a demonstração inequívoca, aí feita, de que o PAIGC era para os combatentes e, portanto, não havia lugar para dirigentes vindos de um processo paralelo. Dos dirigentes e militantes do Partido que desempenharam um papel em Cabo Verde só os “combatentes” foram eleitos para os órgãos superiores do PAIGC. A única excepção foi Luís Fonseca.
Por todo o país slogans do tipo “Apoiamos decisões do CNCV”, “Liquidar o grupo fraccionista”, “Fraccionismo não passará “ tornam-se lugares comuns em cartazes e meetings. A Segurança escala a sua actividade, vigiando militantes suspeitos e organizando provocações.
Em 1979 o clã dos combatentes já tinha nas mãos o aparelho do Estado e, particularmente, o seu aparato político-repressivo. Aproveitaram a oportunidade de dissidência aberta de alguns militantes para erradicar qualquer traço ou produto da movimentação popular espontânea, que foi o motor do processo da independência do país. “A ‘pureza ideológica’, exigida ao longo desse ano, significava essencialmente o seguimento estrito da mitologia da Luta iniciada na Guiné e continuada vitoriosamente em Cabo Verde, na qual os ‘combatentes’ apareciam como semi-deuses, heróis e melhores filhos do povo”, escreve Humberto Cardoso.
David Barros acaba por ser apanhado no meio desta limpeza fratricida. Durante o período que passa na cadeia consegue comunicar com os pais, através duma mensagem enviada numa casca de banana, a pedir-lhes que falassem com o seu então professor de direito, Carlos Veiga, que era também Procurador da República. Veiga manda ordens para que Dave fosse libertado, mas os algozes não o fazem de imediato porque tinha o corpo coberto de feridas. Esperaram primeiro que estas cicatrizassem para assim evitar um exame médico.
Entretanto, Jorge Carlos Fonseca é impedido de sair da Brava. Recorremos novamente à memória de David Barros: “todo o mundo evitava falar com ele ou aproximar-se dele. Era considerado o verdadeiro terrorista e responsável por tudo o que aconteceu. Quando teve autorização para sair da Brava, desceu para a Furna de malas nas mãos, pois ninguém quis dar-lhe uma boleia, mesmo pagando o transporte”.
“A Nani Morais teve tratamento igual ao meu. Foi chamada ao posto policial e interrogada varias vezes. Por fim. Puseram-nos aos dois sentados frente a frente e enxovalharam-na sexualmente dizendo que ela era uma mulher sem respeito, que estava a trair o marido comigo, e mais ofensas que não são dignas de mencionar aqui”.
Depois de libertado, David Barros sonha repetidamente com as torturas que sofreu. Acordava a meio da noite a gritar. Os pais emigraram para os Estados Unidos da América e Dave acaba por se juntar a eles em 1982. Tinham-lhe garantido que não tinha um futuro em Cabo Verde. Na América do Norte frequenta a Universidade de Rhode Island onde completa o curso de Engenharia de Computadores. Trabalha para o Departamento de Defesa, nos testes dos mísseis Tomahawk, utilizados durante a Guerra do Golfo. Passa ainda por companhias como a 3Com, a Cabletron, a PriceWaterCoopers e a IBM Global.
Mas a Brava nunca é esquecida. Lidera a associação Amidjabraba (Amigos da Brava). Mobiliza a comunidade bravense nos EUA para levantar o Busto de Eugénio Tavares. Apoiam a ilha no período da epidemia da cólera, mandando medicamentos, camas de hospitais, lençóis, gerador eléctrico e esterilizadores electrónicos. Enviam materiais escolares para todas as crianças da Brava e abrem uma escola de computadores no Liceu Eugénio Tavares, a primeira da ilha e de Cabo verde. Em 1997 a Amidjabraba é a primeira associação cabo-verdiana a lançar um website (www.amidjabraba.com).
“Até hoje sinto uma mágoa enorme por ter sido maltratado pelos meus próprios irmãos e obrigado a sair da minha terra querida”, confessa ao Expresso das Ilhas, “sou mais um quadro que o país não aproveitou”.