AS LIÇÕES DE ANDREAS LUBITZ

Ontem, durante um voo de Sydney para Colombo, o comandante de um Airbus A330 da Srilankan zangou-se com a copiloto e aproveitando uma ida dela ao WC trancou-se sozinho no cockpit. Independentemente das razões (parece que a copiloto não se fez substituir durante a sua ausência, como mandam as regras) o bloqueio da porta nestas circunstâncias é um gesto de loucura que faz recear o pior. Neste caso o comandante lá acabou por abrir a porta após insistentes súplicas do chefe de cabine mas é impossível não pensar na tragédia da Germanwings ocorrida em 2015. A propósito, deixo aqui um texto sobre o assunto escrito na altura pelo médico, psicanalista e também piloto Dr Henrique Carvalho Maia

Oct 15, 2024 - 15:43
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AS LIÇÕES DE ANDREAS LUBITZ
Passada que está alguma da euforia mediática que se seguiu ao acidente da Germanwings, gostaria de retirar, dentre alguns mais, três ensinamentos dessa tragédia. Sendo médico e psicanalista de profissão e tendo sido durante quarenta anos piloto civil e curioso de tudo o que diz respeito à aviação em geral e á segurança aérea em particular, pareceu-me estar numa boa posição para comentar o assunto de várias perspectivas diferentes.
A primeira lição é muito simples e prática. Esqueçam o folclore mediático e comercial das medidas de segurança decididas na esteira do acidente. Qualquer piloto de linha aérea pode, na fase inicial e na fase terminal de qualquer voo comercial, despenhar o avião sem a menor dificuldade, ainda que esteja acompanhado por outros pilotos (e guarda costas). Em altitude de cruzeiro, em menos de dez segundos, qualquer piloto pode executar manobras bruscas que levem à destruição do avião em voo antes de alguém poder intervir. Por isso, e uma vez que este é um fenómeno rarissíssimo, mais vale incluir o suicídio do piloto na longa lista dos riscos fortuitos e frívolos a que estamos sujeitos quando entramos num avião de linha. E relembrar que a probabilidade de qualquer desses inúmeros riscos se concretizar é infinitamente pequena.
A segunda é mais elaborada. Tem a ver com a previsibilidade de um acontecimento desta natureza. Uma vez mais, acho que é para esquecer. Nos países mais civilizados os critérios de admissão e acompanhamento do pessoal navegante são mais do que adequados, como o demonstram as fantásticas estatísticas que ilustram a segurança aérea. Para não lembrar, o que seria politicamente incorrecto, que se o mesmo acidente, exactamente o mesmo, tivesse tido lugar na Namibia com um Embraer das Linhas Aéreas de Moçambique, por exemplo, ninguém no Ocidente se teria ralado nem os media perderiam tempo a comentar o caso para além dia seguinte.
Quanto à doença não detectada do piloto: A depressão, se não for severa, não é uma doença. (Como a bipolaridade, que está na moda. Todos nós somos moderadamente bipolares). Por muito que isto custe (ou deveria custar!) a todos os que vendem toneladas de psicofármacos a milhões de pessoas que deles não necessitam e que não estão doentes. Sem sequer os avisar da duvidosa eficácia desses mesmos fármacos nem dos seus efeitos secundários indesejáveis. A depressão corrente faz parte da vida de todos nós, sobretudo a partir dos trinta ou quarenta anos. É o preço a pagar por sermos supostamente inteligentes e conscientes. É a vida que é deprimente, não somos nós que somos depressivos. Quando muito deveríamos aprender a lidar melhor com essa depressão corrente. Qualquer de nós (com certeza que uns mais do que outros) pode ter um comportamento imprevisível, agressivo ou auto destrutivo, em certas circunstancias só que ninguém tem a chave para adivinhar quem e quando. A fronteira entre o saudável e o patológico é vaga. É outro risco com que deveriamos saber viver. E aceitarmos a nossa ainda enorme ignorância.
A terceira lição a tirar do acidente tem justamente a ver com a nossa (no Ocidente) dificuldade em lidar com os riscos. Somos uma espécie de novos ricos da tecnologia, da segurança e da abastança. Como todos os novos ricos, só porque temos muita coisa, presumimos que podemos ter tudo. Vivemos há milhões de anos (desde a Lucy), em regime de risco permanente. Simplesmente porque vida é um risco permanente.
Contudo, entretidos com os inúmeros brinquedos e distrações que inventamos nas últimas décadas e a par com uma segurança e abundância nunca dantes conseguidas, fomos ficando convencidos de que somos melhores e mais capazes do que somos realmente. E não "toleramos" o menor risco, nem nada que nos lembre que continuamos a ser tão frágeis e vulneráveis como sempre fomos.
O acidente da Germanwings, para além daquilo que simplesmente foi, veio com uma grande ajuda da ganância mediática confrontar-nos com os nossos medos mais primários, que estão cá todos, mas dos quais nós passamos a vida a tentar abstrair. Com muito álcool, drogas, calorias a mais e alienação virtual a dar uma grande ajuda. Sim, que isto da depressão (entenda-se, isto de estar vivo) não é nada fácil...
Henrique Carvalho Maia