Bulimundo: a história que faltava contar

Os Bulimundo vão pôr o pé na estrada no final do mês para uma digressão à Europa e em Setembro nos EUA a lembrar os anos doirados do grupo, que celebra 45 anos de carreira. E vão de “consciência tranquila” e noção clara de que a morte repentina do seu antigo vocalista, Zé Mário, nada teve a ver com a sua saída do grupo. “Ele auto afastou-se, é preciso esclarecer esta história. O Zé Mário foi usado por um grupinho que não era seu amigo de verdade”, garante António Silveira (Nonó), saxofonista e membro da banda desde a sua formação inicial. Zeca Nha Reinalda confirma e acrescenta: “pedi-lhe para voltar várias vezes, nunca respondeu. Quem matou Zé Mário foram seus pseudo-amigos”. Manel de Candinho, porém, tem outra versão. Intrigas, ciúmes, desavenças … mas também amizade, companheirismo e diversão alavancam Bulimundo, seguramente o mais icónico, eclético e intemporal conjunto musical cabo-verdiano. Contamos tudo aqui, a partir dos bastidores.

Jun 23, 2023 - 04:34
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Bulimundo: a história que faltava contar

Os Bulimundo vão pôr o pé na estrada no final do mês para uma digressão à Europa e em Setembro nos EUA a lembrar os anos doirados do grupo, que celebra 45 anos de carreira. E vão de “consciência tranquila” e noção clara de que a morte repentina do seu antigo vocalista, Zé Mário, nada teve a ver com a sua saída do grupo. “Ele auto afastou-se, é preciso esclarecer esta história. O Zé Mário foi usado por um grupinho que não era seu amigo de verdade”, garante António Silveira (Nonó), saxofonista e membro da banda desde a sua formação inicial. Zeca Nha Reinalda confirma e acrescenta: “pedi-lhe para voltar várias vezes, nunca respondeu. Quem matou Zé Mário foram seus pseudo-amigos”.  Manel de Candinho, porém, tem outra versão. Intrigas, ciúmes, desavenças … mas também amizade, companheirismo e diversão alavancam Bulimundo, seguramente o mais icónico, eclético e intemporal conjunto musical cabo-verdiano. Contamos tudo aqui, a partir dos bastidores.

Tinham planeado tudo com cautela e ânimo. Neste ano em que comemoram 45 anos, os Bulimundo, de Nonó, Zeca Nha Reinalda, Silvestre (Silva), Jorge Pimpas, Duka e Yuri, decidiram celebrar a data com uma digressão para a Europa, agora em Julho, e concertos nos Estados Unidos em Setembro. Detalhe: Zé Mário, vocalista de proa do grupo, havia rompido relações com a banda há quatro anos e tinha já formado seu próprio conjunto Zé Mário & Banda, com planos para lançar também em setembro seu novo single e posteriormente um álbum original.

Mas uma notícia inesperada viria embaçar o panorama: Zé Mário falecia de repente, após fulminante Acidente Vascular Cerebral (AVC), e a tragédia abalou todo o país. No seio dos elementos dos Bulimundo foi um duplo choque, era um colega que partia e, por outro lado, eram eles os maus da fita. Sim, as flechas todas foram apontadas para o grupo fundado por Katchás em 1978, acusado de ter traído o vocalista expulsando-o da banda, o que teria provocado muito desgosto e mágoa no cantor nascido no Paiol, a ponto de entrar em depressão profunda seguido de fatal AVC.

As críticas, vindas de colegas músicos e dos familiares do Zé Mário, ganharam força por causa da última entrevista concedida pelo cantor à Inforpress, onde relatou a sua angústia por ter sido preterido dos Bulimundo sem justificação. Sentiu-se traído, humilhado, descartado depois de 36 anos a dar voz e rosto ao conjunto.

Assume esta posição sem titubeio, o músico e compositor Manel di Candinho, que integrou os Bulimundo durante tres anos (2016 a 2019) e era o guitarrista da formação Zé Mário&Banda. “Foi muito injusto o que fizeram. Ele (Zé Mário) carregou o conjunto às costas durante 35 anos para ser descartado desta maneira. Desrespeitaram um colega de longa data”, opina o célebre guitarrista, que aponta “a ganância” como razão principal pelo sucedido.

Havia muita gente, 10, e pouco dinheiro dos cachés para dividir. Por isso, decidiram cortar. Tiraram três elementos, o Lulan, o Zé Mário e quando me apercebi eu já me tinha afastado, exclui-me logo. E veja, quando tiraram a segunda viola (Lulan) a sonoridade do Bulimundo descaracterizou-se, a mesma música não tem nada a ver com o original. Perderam qualidade”, conta Manel di Candinho, sublinhando que a ideia de reduzir o tamanho da banda partiu do Zeca Nha Reinalda. “Ele é o mais ‘confusento’ no grupo. Por exemplo, o Duka (pianista) estava sempre a causar brigas mas o mantiveram no conjunto. Aliás, ele saia e voltava várias vezes, inclusive tocou com Bulimundo e com Zé Mário & Banda ao mesmo tempo, mas tivemos que o pressionar para escolher e ele preferiu Bulimundo. O Nonó disse certa vez que se o Duka continuasse era ele que sairia, veja só. O Duka não tem paixão por nada, para ele estar ou não estar para ele é indiferente. O Zé Mário sim tinha paixão enorme pelo Bulimundo. E tiraram o seu mundo, ficou como um peixe fora de água”.

Manel di Candinho, assim como Calú di arquitecto, ex-membro dos Bulimundo (vive nos EUA de onde, a partir das redes sociais, desferiu duras criticas ao conjunto pela morte do Zé Mário) não tem dúvidas: “O Zé Mário adoeceu desde o dia que saiu dos Bulimundo. Convivi com ele, sei o que aconteceu”, afirma, ao mesmo tempo que critica “a ausência dos elementos da banda no funeral do Zé Mário. Nenum deles apareceu a dar condolências. Para veres como as coisas são”.

Nas redes sociais houve muita discussão sobre este assunto, com o pianista Calú de Arquitecto e Duka, vizinhos e amigos, a trocarem farpas no facebook com a claque de cada lado a pôr mais lume no mato, mantendo acesa esta dualidade de ponto de vista sobre o que causou, de facto a morte do Zé Mário. Calú revelou cenas dos bastidores dos Bulimundo – como as desavenças entre os elementos ou as conversas que teria tido com Zé Mário, a contar-lhe as suas mágoas – e Duka a negar tais estórias e repetir o que está no laudo médico (morte por AVC) e a rejeitar qualquer culpa dos Bulimundo na doença do Zé Mário, já que, segundo escreveu nas respostas aos posts, o vocalista de Paiol tinha saído do conjunto há quatro anos.

A versão que muda tudo

Nonó, o único integrante dos Bulimundo que esteve com banda desde a sua formação e participou em todos os oitos discos (Silvestre não gravou o último ‘Ta n’deria ka ta kai’), pega precisamente nesse aspecto para rechaçar qualquer responsabilidade do grupo na doença e falecimento do seu antigo colega. “Repare, ele tinha saído há quatro anos e inclusive estava já animado e contente por estar a gravar um disco solo”, começa por dizer o célebre saxofonista, tranquilo e seguro de que “toda a verdade será conhecida e as dúvidas esclarecidas” quando se ater na versão que até este momento não tinha sido conhecida.

Primeiro, a estória da sua ausência do funeral. “Estivemos sim no funeral, todo o grupo estava lá. Mas preferimos não chegar perto e ficar mais afastados para evitar complicações, uma vez que já tínhamos sido ameaçados dentro do cemitério e era prudente agirmos com discrição e respeito. Afinal, era um colega que tinha morrido e devemos-lhe essa homenagem”.

Nonó acredita que toda esta confusão com o nome de Bulimundo envolvido na doença e falecimento de Zé Mário foi provocada por causa de uma série de inverdades criadas para desestabilizar o grupo. “Por exemplo, nós não afastámos o Zé Mário ele é que auto afastou-se. Sentiu-se humilhado por causa do Zeca, ficava quieto ou num canto quando o Zeca estava nos estúdios a ensaiar. E meteram-lhe isso na cabeça até ele sair. Por quem? Um grupinho que não era seu amigo de verdade que faz essas intrigas sem necessidade, o Calú de arquitecto e eventualmente Manel de Candinho”.

Quem confirma e reitera esta versão é Zeca Nha Reinalda, primeiro vocalista dos Bulimundo (saiu em 1983 para fundar com o irmão, Zezé, os Finason e regressou para o grupo em 2013), e tido como pivot da saída de Zé Mário. “Tudo falso. Eu e o Zé Mário tínhamos relações estreitas, nunca tivemos problemas. Tenho provas de trocas de mensagens entre e eu ele, em que o estava a convencer para voltar para o grupo. Falei com ele durante 13 minutos, tenho provas, foi no dia 3 de Junho de 2019. No dia seguinte ele me disse que já não fazia parte do grupo.  Marcámos uma reunião e ele não apareceu. Éramos amigos na mesma. Mesmo quando adoeceu mandei visitá-lo no hospital perguntar-lhe se precisava de alguma coisa, enfim éramos amigos, tínhamos relações estreitas, não tem nada a ver com o que andam a dizer. E quem diz que sou o pivot disso tudo que prove, eu tenho como provar o contrário. Por isso digo que quem matou o Zé Mário foram os seus pseudo-amigos”, diz Zeca exibindo o printscreen das conversas que mantinha com Zé Mário.

Zeca já ouviu também que teria sido ele o agitador no seio do grupo, porque queria ter menos elementos ara receber mais dinheiro. “Veja, eu ganho muito menos com o Bulimundo, eu ganho três ou quatro vezes mais sozinho. Recebi um convite para ir actuar na ilha do Fogo onde poderia ganhar praticamente sozinho, mas optei por cancelar para poder estar na digressão com Bulimundo. O Yuka Barros queria fazer-me uma homenagem nos EUA também recusei para estar com Bulimundo”, salienta, reiterando que a questão monetária não tem papel principal.

“O Zé Mário deve ter cometido alguma imprudência e aquilo afectou-lhe, mas não foi por causa do Bulimundo. O Calú de arquitecto escreveu um artigo no facebook a falar de 'golpe de estado no Bulimundo', em referência ao meu regresso ao conjunto. Isso é falso, no Bulimundo quem manda é a maioria”, reforça, explicando que o problema foi uma interpretação errada da reunião dos elementos para formar o novo Bulimundo. “Quando nos reunimos para tocar não era Bulimundo, era um gruo de amigos que foram tcar na homenagem que fizeram ao Nonó”.

O próprio Nonó esclarece isso melhor. “Bulimundo estava parado, eu é que reuni o pessoal. Eu fui homenageado pela Câmara Municipal de São Domingos em 2013 e para celebrar chamei o pessoal que era dos Bulimundo, convidei alguns músicos para suprir a ausência de outros – o Óscar por exemplo estava doente não podia participar, por isso convidamos o Manel di Candinho, mas era só para essa actuação. Actuamos, mas não era Bulimundo, ou seja, não tinha nada a ver com o regresso da formação inicial. Só que o pessoal gostou então continuamos a dar concertos nesse formato”.

Por causa disso, acrescenta por sua vez Zeca Nha Reinalda, “muitos dos convidados que acabaram por ficar pensaram que já eram parte integrante do conjunto”. “Foi uma barraca termos continuado com todos os músicos que estavam na homenagem ao Nonó”.

A ideia da redução de elementos, explica Nonó, foi uma sugestão da sua produtora. “Por uma questão de logística, a nossa produtora sugeriu diminuir o numero de músicos para as digressões, porque ficava caro. Mas o Zé Mário não foi convidado a sair, ele se auto excluiu por influência dos seus amigos que lhe meteram asneiras na cabeça, que o Zeca veio para o ofuscar, etc. E ele acreditou, tanto que ficava quieto na presença do Zeca. Outra coisa, ele levava tudo o que debatíamos e discutíamos nas reuniões para fora, contava tudo aos seus amigos, inclusive sobre contas, etc. Eles, o Calú, Manel di Candinho, sabiam tudo o que se passava no seio do grupo porque o Zé Mário ia logo contar. O problema é que eles não queriam o Zeca de volta, aí tive que impor. O Calú e o Zeca não se dão lá muito bem”, confessa o saxofonista, para quem “o Zé Mário foi usado por um grupinho que não era seu amigo de verdade”.

Zeca Nha Reinalda acha o mesmo e coloca Manel di Candinho, mesmo sem dizer seu nome de boca cheia, como actor principal. “Ele pensou que era o segundo Katchás ou novo Katchás, mas não. Criou-nos alguns embaraços. Inclusive já tocamos em São Domingos, quando era vereador de Cultura, não recebemos o dinheiro até hoje. Entretanto, nós é que somos gananciosos”, ironiza.

Entre intrigas, críticas e desavenças, os Bulimundo – provavelmente a banda de maior sucesso da história musical cabo-verdiana até hoje, pela longevidade, originalidade e qualidade – estão ainda firmes e de pé, prontos para lançarem-se à estrada com digressão este mês de Julho na Europa a celebrar os 45 anos de boa música. E em Setembro estarão nos palcos dos EUA a brindar os fãs com seus verdadeiros clássicos da cultura cabo-verdiana. E fazem-no com alegria, harmonia e muita diversão. Afinal, a longevidade do grupo e a amizade entre eles supera qualquer fofoca de esquina.