DUAS REGRINHAS AO MEU AMIGO EUROPEU - Paulino Dias

Caro amigo, escrevo-lhe estas regrinhas a partir da sala de espera do Centro Comum de Visto, aqui na minha Cidade da Praia, Cabo Verde. Pela janela vejo o verde que já brota - como um poema - pelas encostas da minha cidade.

Aug 29, 2017 - 09:28
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DUAS REGRINHAS AO MEU AMIGO EUROPEU - Paulino Dias


Caro amigo, escrevo-lhe estas regrinhas a partir da sala de espera do Centro Comum de Visto, aqui na minha Cidade da Praia, Cabo Verde. Pela janela vejo o verde que já brota - como um poema - pelas encostas da minha cidade. A "minha" praia de Quebra Canela, que se pressente para lá do Cruz de Papa, tem uma beleza pós-chuva, debruada de pequenas ondas de coroas brancas, que sedimenta ainda mais este meu amor pelas ilhas. O céu intercala-se entre o azul-sonho e as núvens que ora brancas, ora carregadas, nos incentivam à calma contemplação e ao enlevo.

A meu lado, dezenas de pessoas, meu amigo. Jovens, menos jovens, quatro filas à minha frente está um casal com duas crianças. Tento adivinhar-lhes a vivência. Os sonhos. A motivação. Uma certa angústia expectante que lhes pressinto no olhar. Não sei porque, mas há qualquer coisa no olhar de um ou de outro que me faz lembrar a tristeza que se vislumbrava, quando criança, nos olhos dos bois a caminho do matadouro ali em Povoação de Ribeira Grande.

Estamos todos aqui à cata de um visto, meu amigo. Para poder te visitar, dar-te um abraço, gargalhar contigo porque sim, chorar contigo quando necessário, negociar contigo e comprar contigo, trabalhar contigo porque precisas, sentir na pele as mesmas dores (e outras, quiçá) e beber deste mesmo céu - que partilhamos - as pequenas alegrias da vida.

Nenhuma das dezenas de pessoas que vejo agora a meu lado na sala de espera carrega qualquer arma consigo, meu amigo. Nem sequer no olhar agora angustiado, enquanto pelo altifalante uma voz metálica e fria vai bradando números (e lembra-me agora A Lista de Schindler...) e metralhando perguntas.

Esta gente carrega consigo toda a humanidade condensada nos seus olhos, meu amigo europeu. A mesma humanidade que nos faz confiar em ti e abrir-te as portas das nossas casas nestas ilhas, com um visto estendido como tapete à entrada, onde podes massagear teus pés cansados. Daqui a pouco, nem isso meu amigo.

Assumo-me como humanista, meu amigo europeu. E nesta condição doem-me fronteiras. Físicas, mentais, culturais, tecnológicas - mas sobretudo as fronteiras de valores. Doi-me esta angústia plasmada nos olhos desses seres humanos a meu lado. Que talvez só querem ir lá no teu país dar-te um abraço amigo e de morabeza (conheces porventura esta expressao?).

42...49...51... Reparo (também angustiado!) para o meu número: 72. No entanto, na inscrição online para a entrevista, marcaram-me hoje 29 de agosto, às 11h sem falta. Olho para o relógio: 11h30. 57!, escuto mais uma vez a voz metálica e fria, a tal que me lembra A Lista de Schindler.

Olho de relance para o meu reflexo na janela ao lado. Vejo ali também, quase impercetível, um quê de angústia. De cansaço. E também, confesso, de deceção. Pela quase humilhante submissão. Pela burocracia. Pelo risco de recusa. Apesar de ter viajado para uma trintena de países (sem que nenhum tenha conseguido jamais enfeitiçar-me como essas nossas ilhas a ponto de querer ficar por la). Apesar de uma tal de 'Parceria Especial' que deveria teoricamente facilitar a mobilidade de homens de negocio - como eu, que preciso viajar para ir la tratar de negocios contigo. Compreendes-me, meu amigo europeu?

Mas não te tenho rancor nem mágoa, meu amigo. Nem te trancarei as minhas portas em jeito de represálias. Não mo permitem os meus valores como humanista e o principio sagrado de nunca deixar-me alinhar por baixo. Serás sempre bem-vindo à essas nossas achadas e cutelos, às nossas praias e às nossas cidades, à cachupa, ao grogue e à nossa morna, aos nossos negócios.

Eu, podes estar certo, esperar-te-ei sempre com um sorriso sincero e os braços abertos, na soleira da minha porta escancarada.


Bráça grrotchóde!, meu amigo europeu!