"Estamos injuriados, com fome e sede"

Em Santiago, driblar o mau ano agrícola e escassez de água tornou-se ginástica diária. Além de trabalhos pouco remunerados, são horas na fila para conseguir água e aguentar "até que Deus faça chover".

Apr 14, 2018 - 22:24
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"Estamos injuriados, com fome e sede"

Em Santiago, driblar o mau ano agrícola e escassez de água tornou-se ginástica diária. Além de trabalhos pouco remunerados, são horas na fila para conseguir água e aguentar "até que Deus faça chover".

Em Purgueira, concelho de São Salvador do Mundo (Picos), interior de Santiago, Felicidade Alves ("Dada") madruga a caminho do reservatório.

Com dois garrafões na mão, percorre em passo ligeiro as dezenas de metros que separam a casa do reservatório, à beira da estrada asfaltada que liga a cidade da Praia ao interior de Santiago.

O azul da estrutura e o amarelo dos muitos bidões que a rodeia contrasta com o castanho da terra ressequida com apontamentos tímidos de verde que diminui a cada dia.

"Temos de nos levantar cedo para esperar na fila e conseguir duas botijas de água (de 25 litros cada)", disse à agência Lusa Dada, que se apressa a levar os dois bidões de água para casa e voltar a conseguir lugar na fila, porque não param de chegar crianças e donas de casa ao fontanário local, cada um com o seu balde e garrafão, para encher de água.

Cabo Verde atravessa uma das piores secas dos últimos anos e as autoridades declararam o estado de emergência hídrica, impondo o uso racional da água.

Em Purgueira, cada pessoa tem direito a dois garrafões de 25 litros por cada ida ao reservatório, mas "Dada" entende que não é suficiente para as necessidades diárias da casa, onde mora com o marido e dois filhos menores.

"Se encontrarmos outro lugar vamos lá apanhar mais água", disse, fazendo referência aos poços, nascentes ou furos das imediações.

"Chegamos cedo e ficamos aqui até por volta das duas ou três da tarde", lançou a doméstica, que paga seis escudos por cada vasilhame de 25 litros.

O seu maior desejo é que chova este ano e que algum dia possa ter água canalizada em casa.

Quem gere a água e recebe o dinheiro, para depois o entregar à empresa Águas de Santiago (AdS), é Eurídice Tavares, moradora na zona vizinha de Babosa e "aguadeira" há um ano e seis meses.

Com lenço amarrado à cabeça, avental e pano na cintura e segurando um guarda-sol, Eurídice Tavares abre e fecha a torneira e anota tudo num caderno, que protege com um saco de plástico.

As regras são claras: cada pessoa tem direito a dois recipientes de água por cada vez que ficar na fila, num máximo de seis por dia.

O reservatório é abastecido pelos bombeiros com nove toneladas de água, quantidade que é distribuída durante dois dias mas, segundo Eurídice, é insuficiente para todas pessoas, que já vivem com "muitas dificuldades".

Picos, município criado em 2005, é um dos mais pobres e pequenos de Cabo Verde, com pouco mais de 8 mil habitantes, e que vive essencialmente da agricultura e de criação de gado.

De Purgueira, desvia-se para a direita e começa-se a subir por uma estrada calcetada, estreita, muito inclinada e com curvas perigosas, que dá acesso a Rebelo Acima, uma localidade alta do concelho, com menos de 100 habitantes e sem acesso a água canalizada ou eletricidade.

Numa das curvas, um grupo de homens e mulheres está a varrer e a tapar os buracos da estrada municipal, um trabalho pago pela Câmara.

Todos os trabalhadores são de Purgueira. A única de Rebelo Acima é Teresa Vaz, 48 anos, mais conhecida por "Maté", que antes vendia produtos agrícolas na zona até a falta de chuva ter acabado com o lucro.

Por isso, aceitou o trabalho de varredora, ganhando 350 escudos por uma manhã de trabalho. "Não é muito, mas dá para desenrascar. É melhor do que ficar sem nada", diz Maté.

O chefe do grupo é Joselino Correia, 60 anos: "Estamos injuriados, com fome e sede. Temos este bocadinho de trabalho para esses meses. É pouco. Ajuda, mas as coisas estão más. Há crise para todos os lados".

O trabalho que começou em Fevereiro prolonga-se por seis meses e depois, diz Joselino Correia, fica "nas mãos de Deus" para sustentar a família, com quatro netos, dois filhos e a mulher.

"O trabalho é duro, mas Deus é pai, se nos der chuva no próximo ano [agrícola], podemos recuperar. Mas não sei. Estamos nas mãos de Deus", prossegue o sexagenário, que só se recorda de uma seca tão violenta nos anos 1970.

Em resposta à seca e ao mau ano agrícola, o Governo de Cabo Verde está a implementar um plano de emergência financiado pelos parceiros internacionais em cerca de 10 milhões de euros, cujas medidas prioritárias são a mobilização de água, a criação de emprego e salvamento do gado.