Fogo: Tradição secular dos Reinados agoniza em silêncio com uma morte mais do que anunciada – Fausto Rosário
O agente cultural Fausto do Rosário defendeu hoje que o Reinado, uma tradição secular, “agoniza em silêncio” e com uma morte mais do que anunciada e antevê o seu fim, mais dia menos dia.
“Hoje, dia 06 de Janeiro, como tem sido prática, há mais de cinco séculos, os poucos "Rênado" (Rei-Nado) que ainda restam na ilha, sairão pelas estradas e caminhos, anunciando a boa nova – o nascimento do Redentor para a salvação das nossas almas definitiva e perenemente marcadas pelo estigma do pecado original”, disse Fausto do Rosário.
Divididos em pequenos grupos, “os mensageiros” recriarão a visita dos reis magos e a fuga para o Egipto, através de ladainhas e orações em latim, português arcaico e crioulo e até a antevéspera da Quaresma, estas figuras serão os últimos protagonistas de uma das mais antigas, talvez a primeira, manifestação de religiosidade popular de que há memória, segundo o agente cultural.
Do propósito original que servia para arrecadar, junto aos proprietários mais abastados, fundos indispensáveis para a Igreja, parece perdido no tempo e o que antes era “registado meticulosamente nos livros paroquiais”, hoje é lembrado apenas como um eco de um compromisso comunitário passado.
O abandono da Igreja ao deixar de reconhecer a sua actividade até chegar a proibir a entrada dos "Rênado" em suas portas na década de 1990, por um pároco que se julgava acima de tudo e todos, relegou essa tradição ao “completo ostracismo”.
“Sem qualquer apoio ou incentivo, os ‘Rênado’ sobrevivem como uma curiosidade aberrante, praticada por algumas pobres almas, sem nenhuma transferência geracional ou solução de continuidade, sem nenhuma tentativa de preservação ou registo por quem deveria se ocupar destes espectros, despedidos de qualquer incentivo que não as poucas moedas e alguns géneros alimentícios recebidos, acarinhados somente por aqueles que com mais de 70 anos neles se revêem, teimosamente preservam a memória colectiva”, disse o agente cultural.
Segundo o mesmo, nos dias de hoje, e apesar de desprovidos de uma conexão geracional ou de esforços de preservação cultural, os reinados “carregam as suas imagens da Virgem e do Menino em mãos, marcam o compasso das ladainhas com pequenos tambores e encerram as suas orações com o som de uma sineta”.
“Mais do que celebrar a boa nova, os seus cânticos se assemelham a um réquiem, um canto fúnebre ao próprio desaparecimento iminente dessa tradição”, destacou Fausto do Rosário, para quem sem a continuidade e com o desprezo da modernidade por ritos tão simples, a identidade cultural da ilha perde, definitivamente, mais uma página.
Para muitos, o fim do "Rênado" é um símbolo da transformação inevitável dos tempos e parafraseando Camões disse que "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades."
Para aqueles que ainda seguram o tambor e a imagem sagrada junto ao peito, o som das ladainhas é muito mais do que uma tradição, é um testemunho da resistência de uma cultura que se recusa a desaparecer sem luta.
Inforpress/fim