Matilde, 75 anos do seu naufrágio

Em memória de Nhô Henrique de Lola, Capitão do veleiro Matilde. No dia 27 de Agosto de 1943 o navio Matilde, capitaneado por Nhô Henrique de Lola, de Lém, saiu do Porto da Fajã d´Água, na ilha Brava, para a América aonde nunca chegou.

Mar 28, 2018 - 14:04
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Matilde, 75 anos do seu naufrágio

Em memória de Nhô Henrique de Lola, Capitão do veleiro Matilde

No dia 27 de Agosto de 1943 o navio Matilde, capitaneado por Nhô Henrique de Lola, de Lém, saiu do Porto da Fajã d´Água, na ilha Brava, para a América aonde nunca chegou.

Matilde, construído em São Vicente, pertenceu à Casa Carvalho, que lhe deu o nome, passou para Manito Bento, abastado comerciante da Praia, e posteriormente foi adquirido pelos irmãos Daniel e Abel do Sr. Ramos, grande comerciante de Cova Rodela, Brava. Quando desta última transação, o barco achava-se com a proa avariada devido a um embate.

Viage di Distino

Matilde, Viage di Distino, é uma publicação bilingue (escrito em cabo-verdiano e em português) editado no Rio de Janeiro, Brasil, em 1991, por Artur Vieira (Brava, 1932 -).

O autor é um escritor da diáspora, membro efectivo da Academia Internacional de Letras, ocupando a cadeira n.º 47, patronímica Eugénio Tavares – a viver no Rio de Janeiro. Baseado em depoimentos, Artur Vieira procura reconstituir a tragédia do naufrágio do veleiro Matilde, que se assinala agora os 75 anos, e fixa para a posteridade uma página triste da história trágico-marítima das ilhas.

Devido à guerra na Europa, os Estados Unidos conclamaram a todos os seus cidadãos no exterior a regressarem. Na ocasião, a Ilha Brava estava apinhada de homens naturalizados norte-americanos. Sem possibilidade de viajar por causa do conflito e falta de barco, muitos viram no Matilde a grande chance de sair da ilha e estavam dispostos a pagar o que fosse necessário para isso.

O bilhete de passagem custava 200 dólares, mas quem não pudesse pagar apresentava um fiador que assinava um termo de responsabilidade podendo a dívida ser paga nos Estados Unidos.

No dia aprazado, saiu o veleiro. Ia bastante carregado levando colchões, vasilhames com água e mantimentos, lenha, pilão, moinho, cabras e um novilho e, entre tripulantes e passageiros, cinquenta a sessenta homens, incluindo os próprios proprietários do navio. Pode-se considerar que a quantidade de carga e o número de homens a bordo era exagerado, mesmo para uma viagem dentro das ilhas.

Filho do Capitão, único “sobrevivente”

Henrique Rosa, hoje homem de 85 anos, conta que, desde a véspera da partida se encontrava a bordo varrendo, quando viu no porão uma moeda de dez tostões. As apanhá-la, verificou com espanto que do fundo emergiam diminutas bolhas de água. Sentiu medo e pediu ao guarda que o levasse à terra para comprar goiaba.

Tanto insistiu que o homem o levou à terra recomendando-lhe pouca demora, o que não aconteceu, tendo ficado a brincar com outros meninos e a vaguear nos canaviais até anoitecer. Refugiou-se num pardieiro e, escondido entre feixes de palha, pôde seguir o embarque dos tripulantes.

No dia seguinte, depois do navio já ter seguido viagem, Henriquinho regressou a casa. A mãe zangou-se com ele por ter rejeitado o “caminho d’ América”, mas justificou-se contando sobre as infiltrações que presenciara no navio.

“Depois que Matilde sumiu entre pesadas nuvens, as procelas iniciam uma grotesca dança nas costas da Ilha. O temido ‘inverno’ do Ciclo das Águas chega demasiadamente cedo e implacável. Para piorar, um ciclone devasta o mar e a terra”.

Passaram-se vários meses e nenhuma notícia do Matilde. A 2 de Janeiro chegou um telegrama dos Estados Unidos informando que em nenhuma parte havia notícia do veleiro. A nota propagou-se e horas depois a Ilha Brava toda cobriu-se de luto.

O caso narrado não é único e Artur Vieira dá como precedentes vários outros navios desaparecidos nos percursos Brava/Estados Unidos/Brava.

Saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados, / histórias da baleia que uma vez virou a canoa… / de bebedeiras, de rixas, de mulheres, /nos portos estrangeiros…

- Jorge Barbosa, “Poema do Mar”, in Ambiente, 1941

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 850 de 14 de Março de 2018.