Não precisamos de candidatos para fazer casas de banho. Precisamos de candidatos com visão para um desenvolvimento estrutural do território
A 1 de Dezembro, Cabo Verde vai a votos nas nonas eleições autárquicas, que marcam 33 anos de poder local democrático no país. Numa reflexão sobre a evolução do sistema autárquico e os desafios enfrentados pelos municípios, Jacinto Santos, primeiro presidente da câmara da Praia e especialista em desenvolvimento local, analisa a transformação do municipalismo, advogando a necessidade de um papel mais activo na promoção do desenvolvimento e criação de riqueza. Em entrevista ao Expresso das Ilhas, passam-se também em revista os resultados de eleições passadas e acontecimentos que marcaram os últimos quatro anos nos municípios, a nível político, como a fragmentação política em São Vicente e os problemas de governabilidade na Praia. Antevendo as eleições que se avizinham, e se adivinham duras, Jacinto Santos refere ainda o efeito psicológico das vitórias (e derrotas) nestes dois maiores centros urbanos, refutando, entretanto, com base nos dados, qualquer contágio entre eleições municipais e legislativas. E insiste: “o desenvolvimento em Cabo Verde passa inevitavelmente por criar as condições de desenvolvimento nos territórios”.
A 1 de Dezembro, pela nona vez, vamos ter eleições autárquicas. Ao fim de já nove eleições, como vê a evolução destas eleições?
Já são 33 anos de poder local democrático. Com a intercalar para a Câmara de São Vicente, em 1995, são já um total de 10 eleições municipais. De 1991 a esta parte houve, sem dúvida, uma grande evolução e, globalmente, os municípios em Cabo Verde têm desafios enormes. Do meu ponto de vista, o primeiro desafio – e, após três décadas de experiência autárquica, justifica-se um salto - é passarmos de um municipalismo muito administrativista, virado para o social, que poderia classificar-se de “município-providência” e fazer dos municípios os principais motores da promoção do desenvolvimento económico local, isto é do crescimento da economia.
Como dar esse salto?
Primeiro, olhar para o território como um lugar onde se gera riqueza. Para tal é necessária uma aposta muito forte em políticas e medidas de atracção de investimento privado que gere riqueza, crie postos de trabalho e, em consequência, também
gere receitas fiscais e outras para o próprio município. Deve ser feito, até em consequência do que foi previsto em 2010, com a adopção da Lei Quadro da Descentralização Administrativa. De 1991 a 2009, a intervenção dos municípios em matéria de desenvolvimento estava reduzida à selecção e recrutamento de mão de obra não qualificada para empregos públicos locais. Em 2010 faz-se uma ruptura e introduz-se uma nova atribuição municipal, que é a promoção de actividades económicas e a promoção do empreendedorismo.
E isso não está a ser feito?
Alguns municípios fazem-no pontualmente, mas não há uma política económica local que acompanha a política a nível nacional. Fala-se da criação de um ambiente de negócios favorável para atracção de investimentos, mas raramente os municípios acompanham esta medida para atrair e fixar o capital no território. É preciso qualificar o território, onde entra em grande medida a acção do governo, para promoção de investimentos estruturantes que qualificam o território, portanto, que cria competitividade territorial em termos de infraestruturas, de acessibilidade, a própria política de urbanização. A grande parte dos municípios é ainda de natureza rural, é necessário em cada um desses municípios promover a urbanização para atrair pessoas e fixar novas actividades. Para mim, isso é um elemento estrutural que tem a ver com aquilo que se pretende a nível nacional. O desenvolvimento em Cabo Verde passa inevitavelmente por criar as condições de desenvolvimento nos territórios.
Qual deveria ser o perfil dos autarcas, para fazerem cumprir esses novo papel dos municípios?
Tem que ser gente preparada não só do ponto de vista técnico, mas gente com competência política. Competência política, para mim, é gente com visão. Em 91, corríamos atrás das pessoas para aceitarem fazer parte das listas. Parece-me que hoje iniciar a política no município tornou-se uma coisa mais atractiva, mas tem mais exigências. Hoje não precisamos de presidentes de câmaras para fazer casas de banho, melhorar tectos de casa,são actividades que um delegado de governo, uma ONG consegue fazer, mas sim de candidatos com visão para um desenvolvimento estrutural do território. Isso não se vende para o eleitor, mas tem que se mostrar o caminho, a ambição, a visão, o legado que se vai deixar no fim do mandato: uma mudança estrutural.
Neste momento, não é necessário entregar um programa político quando se apresentam candidaturas.
Isso é uma falha grande. Por um lado, falta de respeito para o eleitorado e intransparência no processo político, porque quando não se apresenta um programa estruturado, escrito, amplamentedivulgado, aqueles que forem eleitos ficam relativamente à vontade quando se chega o momento de fazer o pedido de prestação de contas. Por outro lado, mostra também uma debilidade, um déficit do próprio eleitorado, no sentido de criar uma cultura de exigência que vá para além do voto partidário. Votam A, B ou C, independentemente das suas qualidades políticas, pessoais e humanas, porque o partido que escolheu.Acho que faz parte, estamos num processo, mas os partidos traçam directivas gerais e devem exigir aos seus candidatos a apresentação de um programa.
Essa é uma outra questão. Até onde devem interferir os partidos, na questão autárquica?
Os partidos têm mais do que interferência, têm um papel decisivo, porque as eleições autárquicas não são eleições cívicas, são eleições de base partidária. Os partidos são os principais concorrentes, as plataformas eleitorais são dos partidos, não só dos candidatos, são plataformas partidárias e os eleitores votam em listas partidárias plurinominais fechadas, apresentadas pelos partidos políticos.
Temos candidaturas independentes.
Mas é residual.
Como vê o facto de serem residuais?
Temos uma democracia de base partidária e os partidos colocam como objectivo estratégico ter maior influência liderando os municípios. Porém, dos dados que analisei, não encontrei, até agora, elementos consistentes que confirmem o contágio de uma eleição sobre a outra. As municipais não contagiam as legislativas e vice-versa.
Não há contágio?
Nos resultados eleitorais das 8 eleições analisadas, não encontrei evidências disso. Os dados que analisei mostram que as pessoas fazem uma distinção muito clara entre eleiçõeslegislativas e eleições municipais. Vou dar um exemplo. O MpD perdeu em eleições legislativas em 2001 e permaneceu na oposição durante 15 anos. Durante esses 15 anos, o MPD continuou a ser o partido com maior base autárquica. Mesmo em 2001, em que o PAICV teve o maior número de votos, uma diferença de quase 2 mil votos, o MpD teve o maior número de mandatos. Nas últimas eleições de 2020, por exemplo, o PAICV ganhou eleições na Praia, além de ter ganho Tarrafal e outros. Um ano depois, em 2021, o MPD ganhou as legislativas. Para confirmar a minha hipótese, estou ansioso por conhecer os resultados eleitorais das eleições deste ano, mas eu estou convencido de que não vai haver turnover.
O MPD é o partido que mais autarquias tem vindo a conquistar, mas teve um pico em 2016 e depois decaiu, perdendo várias Câmaras em 2020, incluindo a da Praia. Essa queda, será uma tendência ou algo pontual?
Parece ser pontual. 2016 foi anormal, foi a mudança de um ciclo político no seu todo. O PAICV estava há 15 anos no poder e 2016 foi mudança de ciclo, com todo o fenómeno Ulisses, que vinha com resultados extraordinários do município da Praia, e não foi por acaso que os marketeiros do MPD sugeriram a colagem da imagem do Ulisses a todos os candidatos. Criou um efeito de arrastamento muito grande e que foi anormal. Não é normal, num sistema bipartidário perfeito como o nosso, em 22 municípios, um partido ter ganhado 18. E se considerarmos que o presidente da Câmara da Boa Vista e de [Ribeira Brava] São Nicolau eram dissidentes frescos do MpD, a base é esmagadora. 2020 mostrou um certo equilíbrio, senão teríamos quase que o fenómeno de um partido dominante na esfera pública. Não sei o que vai acontecer…
Em relação ao que aconteceu ou que “saiu” de 2020, três casos. Primeiro, Boa Vista. Como vê a questão de se poder concorrer à Câmara e não se apresentar candidatura à Assembleia Municipal?
É um lapso. É um lapso, neste caso do MpD e outros, que não tiveram o cuidado de fazer a impugnação, porque a lei é clara: as candidaturas são únicas, mas para dois órgãos em simultâneo, para o deliberativo e para o executivo. O Tribunal não podia aceitar uma candidatura só para um órgão, porque pode desvirtuar o sentido do voto e questionar a própria natureza do sistema municipal cabo-verdiano. Os tribunais não devem aceitar e que os partidos concorrentes têm de estar atentos a esta situação, porque criou um desequilíbrio na Boa Vista. Provavelmente, o resultado eleitoral seria diferente em termos de conversão de mandatos.
Outro caso é o de São Vicente. Como é que vê esta situação criada nesse município com a fragmentação dos votos?
Há um acórdão no Tribunal Constitucional, há jurisprudência produzida. Mas eu continuo a defender a tese de que faltou na produção do acórdão do TC aquilo que Jürgen Habermas disse que é fazer o nexo interno entre o direito e o processo democrático. Porque, embora a lei não diga claramente que o presidente da Assembleia Municipal é o cabeça de lista mais votada, todo o raciocínio do processo democrático na formação da vontade política é com base neste pressuposto. Quem estiver à frente da lista para a Assembleia Municipal, em caso de vitória, será eleito, indirectamente, presidente da mesa da Assembleia. Há um outro problema, que eu não domino completamente, que é de ordem constitucional, porque a Constituição diz que os titulares de cargos políticos são eleitos por sufrágio directo, universal, secreto e igual. Mas, introduziu-se, em lei ordinária, a eleição do Presidente da Mesa de Assembleia pela via indirecta. Feita a jurisprudência, a minha proposta implicaria a mudança da lei eleitoral - agora não há tempo para isso - , e que se adoptasse o mesmo princípio em relação ao presidente da Câmara Municipal. O cabeça de lista mais votado para a AM é o presidente da AM. Ficava o problema resolvido, inclusive essa coerência no sistema, embora deixando emaberto a possibilidade de o vice-presidente e o secretário serem os eleitos indirectamente pela Assembleia.
O que pensa da necessidade de se criarem as geringonças dentro do poder local para o município funcionar?
Acho que é democrática, desde que não defraude o sentido do voto popular. Isto é, se tomarmos o caso de São Vicente, temos quatro candidaturas: MpD, UCID, PAICV e o Grupo Independente.Todas essas forças políticas candidataram-se com plataformas próprias e independentes e não há uma mesma base ideológica. A geringonça em Portugal foi formada por partidos da mesma base ideológica. Então, São Vicente encontrou uma coisa contra-natura. De facto, a aritmética eleitoral coloca a UCID, o PAICV e o grupo independente em maioria conjunta,mas quem ganhou as eleições foi o MpD, com maioria relativa. E aqui, do meu ponto de vista, faltou um acordo de negociação a sério para assegurar a governabilidade do município, porque, com o nosso sistema de conversão de votos em mandatos para as CM, temos a vereação plural. Isto significa que a ideia da oposição democrática local é verdadeira, é um facto, então, em caso de não ter maioria relativa, há que negociar com uma ou todas as forças para criar um acordo de governabilidade. Não havendo acordo de governabilidade, há um impasse. Como isto não se resolve administrativamente, a solução seria a dissolução dos órgãos municipais e convocação imediata de novas eleições antecipadas para repor a normalidade democrática, o que não aconteceu. Agora vou a eleições nessas condições, em que um vai tentar convencer o eleitorado de que outro é que o bloqueou. Não conheço profundamente a realidade de São Vicente, mas vai ser uma luta para a imposição de sentidos: um diz "eu não fiz mais porque fui bloqueado" e o outro vai dizer , "não, ele não fez mais porque não quis negociar para que se criasse um ambiente favorável, de governação estável", etc. Ninguém vai avaliar os resultados, é nesse sentido que se vai centrar o debate eleitoral.
O terceiro caso é a Praia. Tivemos problemas com vereadores, confusões internas, a questão da aprovação do orçamento... Que balanço faz deste mandato?
Não vou fazer o balanço do mandato, por uma questão de princípio, mas para mim é uma situação inédita em qualquer democracia e não consigo compreender porque o governo, como entidade de tutela, deixou arrastar tanto esta situação. A questão da legalidade será decidida pelos tribunais, mas na Praia temos um problema político, que põe em causa todo o sistema, todo o regime político concebido e estatuído na Constituição. Põe em causa a regra básica, fundamental em democracia: governa quem tiver a maioria. Se não tiver a maioria absoluta, faz coligação para criar acordo de governo a nível local, para assegurar a governabilidade.Praia tem uma situação inaceitável numa democracia representativa. Como é que um partido recebe uma maioria eleitoral para governar não consegue assegurar essa maioria, por razões
da sua exclusiva responsabilidade, e continua a mandar em minoria? Porque o problema não se ficou apenas pela desavença entre um vereador e o presidente. O vereador pediu desvinculação do partido e tornou-se, em outro caso inédito em Cabo Verde, a nível local, vereador independente. Significa que em nenhuma circunstância o PAICV poderia recuperar a maioria, porque não pode destituir um vereador que se tornou independente. Então, como é que é possível, em pleno século XXI? Numa vereação com nove vereadores, quatro do MPD, cinco do PAICV , um saiu do PAICV e tornou-se independente, o PAICV ficou com quatro.Como é possível que se aceite isto, em termos da Constituição, da defesa do sistema?
Então, aí, caberia ao Ministério da Tutela, neste caso da Coesão Territorial, agir? Accionar que mecanismos?
Dissolução. Em São Vicente, chegou-se a um impasse, ingovernabilidade absoluta, então, dissolução, palavra ao povo para repor a normalidade. Praia, o Partido que ganhou as eleições, perdeu a maioria, logo a seguir ao primeiro ano do mandato. É um conflito político insanável. Não há nenhum mecanismo no nosso sistema que permita ao presidente executivo singular sobrevoaro executivo colegial e entregar as matérias estruturantes para a Assembleia Municipal aprovar. Isso não lembra ao Diabo. O governo não cumpriu o seu papel. O governo falhou. Em casos desses, tem que funcionar a exemplaridade da medida. O governo devia repor a normalidade, o respeito pelas normas e regras básicas do funcionamento do sistema, promover, por via de resolução do Conselho de Ministros, a dissolução dos órgãos municipais de São Vicente e da Praia e chamar o povo para repor a normalidade. Pôr [a questão] nos ombros da justiça é não querer assumir de frente uma responsabilidade política quesó cabia ao governo. As coisas estão na justiça, depois das eleições deste ano, não desaparecerão do sistema judicial. Um dia, a justiça vai pegar em todo esse processo e julgar, dar uma decisão final, mas o precedente democrático criado é gravíssimo. E qual é o precedente? É que desde 1991 e até 2020, nunca o PAICV tinha questionado o sistema autárquico em vigor e foi na base desse sistema que o PAICV concorreu a todas as eleições. No sistema, há um órgão deliberativo, há o executivo colegial e há o executivo singular. Muitos dos itens das competências do Presidente da CMsó poderão ser efectivos mediante aprovação pela vereação, pelo executivo colegial, e depois submetidas à Assembleia para a deliberação final. O que o PAICV fez? Chumbou a lei de bases de finanças locais que mantinha este princípio, antigo e que não é uma invenção do Cabo Verde, para permitir que o presidente possa passar por cima do executivo com base numa redacção de um artigo da Lei das Finanças Locais. Portanto, usou um subterfúgio jurídico para obviar ou justificar o Presidente passar com as propostas por cima da Câmara e levar à Assembleia Municipal, esquecendo-se que o Presidente da CM só é um órgão executivo singular, porque a lei ordinária assim o estabeleceu e definiu. Mas presidente é primus inter pares. Ele é eleito na mesma lista que os outros vereadores. Portanto, é para efeitos de gestão, de administração, de coordenação política, que ele foi transformado num executivo singular para poder dedicar-se full time à gestão do município. Porque há outros sistemas em que o presidente não é remunerado. O presidente vai à sua vida, e há um gestor público que cuida e faz a coordenação política. Então, acho que é uma situação muito grave, vai ficar nos anais da história porque daquilo que entendo, a diferença do Estado de Direito Democrático em relação ao Estado de Direito não democrático é que o poder político tem que ser legitimado democraticamente. É isso que dá sentido à democracia. Agora, como é que explicam que um partido perde a legitimidade democrática para se manter no poder e vai a eleições, de uma maioria eleitoral que lhe foi conferida, com uma minoria. Isto só pode ser Cabo Verde.
Vamos entrar num novo ciclo. Quais são os problemas dos municípios e da gestão dos municípios que o governo realmente deve sanar e resolver?
Do meu ponto de vista, o maior compromisso de qualquer governo não é com o poder, é com a democracia, os seus princípios, as suas regras, procedimentos e processos. E quando a legalidade democrática está em jogo, quem for governo tem essa responsabilidade política e ética de resolver os problemas políticos pela via democrática e legal. Dissolver é uma solução prevista na lei, é um mecanismo legal e democrático. Não tem nada a ver com a ditadura, porque em primeiro lugar está o princípio, a democracia e o interesse público. Durante todos esses anos, o desempenho desses dois municípios ficou altamente afectado e o interesse público foi prejudicado. Projectos que deviam ser executados com maior rapidez não foram, negociações que deviam ser feitas para desbloquear outros financiamentos não foram feitas. Transformou-se o município e sua administração num foco de luta político-partidária. Espero que os eleitores tirem ilações. Depois temos o grande desafio, que é a desigualdade enorme. Temos 16 municípios que estão abaixo do índice compósito de coesão territorial. Nesses 16, temos 6 que são muito pobres e a concentração proporcional de riqueza produzida está em Praia, São Vicente, Sal...
Mas os mais vulneráveis não têm estado a ser alvo de discriminação positiva?
Sim, começou em 2016 com a atribuição de verbas a municípios mais pobres, um conjunto de 13, se não me falha a memória, mas isso não resolve o problema estrutural. Insisto: é preciso passarmos por um modelo que promova o crescimento económico, o município tem que ser um sítio gerador de riqueza, não apenas um instrumento de transferência de benefícios sociais. O município, enquanto tal, não se pode transformar num centro de emprego para resolver a pobreza das pessoas e com uma percentagem enorme de trabalhadores não qualificados.
Isso significa ter mais poderes.
Exacto. Sobretudo a descentralização financeira. Grande parte dos municípios vive do financiamento estrutural que é o fundo financeiro municipal.
A Lei de Bases do Orçamento Municipal que o governo levou à Assembleia (mas foi chumbada) ia permitir maior descentralização?
Sim, mas o governo podia ser muito mais ambicioso em matéria de descentralização financeira.
Já voltamos a essas questões, mas ainda sobre as eleições autárquicas que se avizinham. Olhando a atmosfera política, como é que antevê que sejam?
Muito duras. Prevejo a radicalização do discurso dos políticos. Seria importante uma moderação da linguagem. Os partidos candidatos têm um papel muito importante de elevar a fasquia, o povo quer moderação, serenidade… Mas, do meu ponto de vista, vai ser muito duro. Há uma tentativa de nacionalização das eleições municipais. Como já disse, ainda não vi evidências para que justifiquem a transformação de uma eleição local, como algo que funcionasse como trampolim para a eleição nacional, mas o debate político sobre a situação na Praia de São Vicente alcançou um patamar quase que de um debate entre os dois partidos, dois modos de ver o município e o desenvolvimento, e esses dois partidos vão entrar com tudo nessas eleições. Espero que tal se limite aos recursos de que cada um dispõe e ao cumprimento dos limites estabelecidos pela Constituição e lei.
E como vê o envolvimento do governo nestas autárquicas? E também do Presidente da República, que já apareceu num vídeo da actual equipa da CMP, entretanto retirado?
O governo, por todo lado, é assim. Não há nenhum partido que esteja no governo que não procure influenciar directa ou indirectamente. Não aceitar isso é pura ingenuidade e hipocrisia. Agora, um órgão uninominal, que define a Constituição como super-partidário, não pode, nem com o olhar, nem com o gesto, nem com o semblante, dar ideia que está a apoiar. O Presidente em nenhuma situação devia estar envolvido directa ou indirectamente em eleições legislativas municipais.Na minha leitura, pode ser que esteja errada, Cabo Verde ainda vive efeitos da COVID. E nem falo de questões económicas e sociais, mas a nível mental e relacional. E também vive efeitos da crise económica mundial. Por mais que queiram gerir isso, há impacto. Eu nunca vi o PAICV assim… Parece-me que, do ponto de vista político e psicológico, manter a Praia é quase realizar um objectivo nacional. Para o MpD, tem também um elemento psicológico, mas importante na política. Nada prefigurava, nem as sondagens, que o MpD perderia a Praia, então ficou como que um amargo de boca. Psicologicamente, e comparando com o desempenho, na visão do MpD, muito fraco em relação às promessas eleitorais e ao cumprimento das atribuições básicas do município, pode funcionar como um elemento mobilizador para essascampanhas do lado do MpD. Por isso digo, em Praia e SV, é uma eleição que é local, mas parece ter impacto nacional. Em 2020, o MPD ganhou as eleições autárquicas, mas psicologicamente parece ter perdido, porque perdeu a Praia. É esse o efeito psicológico.
Voltando agora ao que falávamos, sobre os municípios…
Os municípios são autónomos, exercem os seus orçamentos como querem, no respeito da lei, etc, mas não são independentes financeiramente. É necessário lançar as bases para a independência financeira. Por exemplo, a maior fonte de financiamento dos projectos municipais são os recursos provenientes do Fundo Turismo e do Ambiente. Assim, que, progressivamente, a parte do fundo destinada por lei ao financiamento de projectos municipais, através de celebração de contratos programas, seja municipalizada, seja transformada em receitas municipais, para criar transparência municipal, para se adoptar o princípio da universalidade do orçamento municipal. Ou seja, que tudo que entra pelo cofre dos municípios, através de receitas próprias, doações, definições de contratos programas, seja a partir de um orçamento municipal, para se criar transparência municipal. Isso permitirá acabar com essa “guerrinha” sobre de quem é o projecto. Quando o governo financia e a Câmara executa, o projecto de quem é? Isso tem que acabar. O segundo aspecto é que os municípios têm que fazer muito mais em termos da arrecadação de receitas fiscais, mas para isso é necessário conferir maior autonomia técnica e operacional ao serviço da administração fiscal. A partir do momento em que o IUP passou a ser uma receita municipal, a lei que fez a transferência dessa nova competência para o município da Praia - que funcionou como município piloto -, estabelecia que o responsável fiscal municipal é equiparado ao chefe das repartições das finanças. Tem que ter autonomia para, conforme a lei de imposto que existe em Cabo Verde, sem influência directa, pessoalizada a nível político, trabalhar e mobilizar e aumentar as receitas fiscais locais. E há muitas receitas que não são cobradas. Nem é preciso aumentar as taxas e tarifas, basta alargar a base. E mais… Utilizar o património municipal como garantia real para a obtenção de empréstimos.
Mas as autarquias já têm capacidade para dar esse salto?
Nem todas, mas com assessoria chegam lá. Técnicos existem, já se fez experiência muito interessante com recurso à Bolsa de Valores, para financiamento de projectos municipais… Quer dizer, o município tem que melhorar, substancialmente, a gestão financeira, administrativa e patrimonial. E as contas, todo o sistema de gestão,ser rapidamente introduzidas no SIGOF, para criar, de facto, um acompanhamento a tempo real de toda a gestão financeira e orçamental dos municípios. Isso pressupõe capacitação de quadros, formação de quadros, uma cooperação técnica entre governos central e municípios para afectar quadros, desenvolvimento da intermunicipalidade, que não existe em Cabo Verde. Essa parte da organização técnica, administrativa e financeira (para criar as condições para que os municípios dêem o salto e coloquem, no centro, medidas políticas que promovam o crescimento económico local sustentável) é vital não só para os municípios, mas para a governação global do país nos próximos 10 anos.
Por falar nisso, no espaço de 10 anos, a sua proposta, apresentada no seu livro “O Poder Local”, também era passar de 22 para 15 municípios. Isso ia ajudar nessa gestão?
Já sei que nenhum partido vai fazer isso, mas ajudaria. Os 6 novos municípios criados de uma assentada em 2005, do meu ponto de vista, cumpriram o seu papel. Foram criados na circunscrição territorial dos municípios de origem, as freguesias, que não estavam a desenvolver-se, a desigualdade era grande. Esses novos municípios, que chamo de “município com missão”, cumpriram a missão de elevar, no território, o patamar quase com nível de paridade, em termos de acesso às infra-estruturas, acessibilidades, água, saneamento, energia, etc. Não encontramos muita discrepância, dentro do mesmo município, nessa perspectiva. Agora, têm sustentabilidade endógena para avançar com o desenvolvimento? Não aumentaram a capacidade de receitas, porque não há impostos, porque a urbanização é baixa. A maior fonte de receitas dos municípios em Cabo Verde é o IUP, e o IUP é em função do nível de urbanização de cada território. Paga-se muito pouco para as propriedades rurais e não há actualizações. Então, num raciocínio meramente lógico, devíamos fazer de novo a fusão para se criar escala, sinergias, complementaridades dentro do próprio território e reduzir custos administrativos e custos com a máquina política, que é muito grande. O custo da manutenção do poder político nesses municípios pesa e reflecte-se num nível reduzido de capacidade de investimento local. Mas, em simultâneo, nesses pequenos municípios deveriam ser criadas autarquias inframunicipais para permitir que o povo continue a ter os seus representantes locais.
Freguesias?
Exacto, freguesias, como autarquias, e ter, assim, possibilidades de maior mobilização de recursos. Porque as autarquias inframunicipais funcionam com recursos do Estado,
com recursos próprios e com recursos dos municípios que fazem parte, embora não tenham relação hierárquica. Mas, duvido que se faça, nos próximos tempos, essa medida de recomposição do espectro municipal cabo-verdiano. Portugal fez isso recentemente em relação às freguesias e exemplo mais paradigmático é o que aconteceu nos Estados Unidos, é a procura de escala.
Entretanto, no seu livro também diz que o elo mais fraco do municipalismo é a participação dos cidadãos. Supostamente, é o poder mais próximo, mas afinal, a participação é igualmente nula. Como vê este fenómeno?
O município devia ser a escola de formação cívica e democrática dos cidadãos. Infelizmente, não tem sido assim, tem sido visto mais numa óptica administrativa e de prestação de serviços. Em termos de controlo democrático, de participação nas decisões, é o elo mais fraco do nosso sistema e por isso é que proponho inovações e avanços para dar ao cidadão mecanismos e espaços de intervenção, de participação activa na elaboração das políticas públicas, sobretudo em termos de investimentos a nível local. O município não é o usufrutuário de investimentos que faz. Quem usufrui do investimento são as pessoas, os cidadãos.
Mas não tem havidouma evolução? Fala-se mais da questão participativa, orçamento participativo...
Não tem. Não há nenhuma prática consistente do orçamento participativo, de acordo com o que está estabelecido na lei. Atenção, o orçamento participativo não é o resultado da sensibilidade de quem estiver à frente do município. Não, está estatuído na lei.
Quando digo orçamento, digo também iniciativas e projectos
Há uma auscultação, e que ainda é muito fraca. O que proponho é desenvolvermos
efectivamente a democracia participativa e deliberativa. O princípio da elaboração participativa do orçamento municipal está previsto na lei quadro da administração, mas não é para auscultar. É para criar uma dinâmica em que as opções de investimento nos territórios são votadas e com actas comprovativas das reuniões feitas, número de pessoas, deliberações e essas actas têm que estar anexas aos projectos de orçamentos municipais que a Câmara leva à Assembleia para aprovação e, consequência, nas suas cabimentações orçamentais. Agora, isto tudo tem que ser implementado. Não creio que passe por uma lei que define o que é o processo da democracia deliberativa. Depende da visão, dos compromissos. A Câmara tem autonomia para criar assembleias deliberativas a nível dos bairros, isoladamente ou agrupados, de povoações, sobretudo em matéria de investimentos que mudem o estilo e o modo de vida das pessoas. Uma intervenção municipalnão negociada, sem ouvir, sem participar, pode alterar completamente o modo de vida das famílias que escolheram um determinado sítio para morar. Por exemplo, o que se passa em Palmarejo Baixo. Tenho a certeza absoluta de que não tem nada a ver com aquilo que foi a motivação inicial das pessoas. Temos agora um espaço com uma massificação das construções, que altera completamente a qualidade de vida das pessoas que escolheram Palmarejo Baixo para terem sossego, moradia de qualidade, espaço público de qualidade, saneamento de qualidade, isto porque decidiu-se a nível político verticalizar, subir em andares. É preciso que o cidadão tenha mecanismos de intervenção democrática, não digo via lei - essa via é terrível, impossível, mete-se providência cautelar e nunca mais serão decididos -, mas mecanismos democráticos, no processo de planeamento e de desenvolvimento da cidade, dos territórios. Proponho assembleias deliberativas, proponho conselhos locais eleitos a nível dos agrupamento dos bairros, em relação aos quais os delegados municipais prestam contas, em termos de desempenho político e do ponto de vista administrativo, ao presidente de câmara ou a quem o presidente de câmara delegar as suas competências. Esse mecanismo é muito importante. Depois, flexibilizar mecanismos que permitam ao cidadão solicitar reuniões extraordináriasda Assembleia Municipal para discutir problemas que afectam a comunidade. O número de pessoas que a lei actual exige, desencoraja. Acho que 50 pessoas podem solicitar uma convocação extraordinária da Assembleia Municipal para discutir a questão da gestão do bairro, a gestão da recolha do lixo, dos espaços públicos, criação de infra-estruturas colectivas. Esse aspecto é muito importante para que haja transformação significativa nas relações entre o cidadão, a administração municipal e os seus representantes eleitos.
Termino com uma pergunta sua, está no seu livro “O Poder Local”: de facto, quem manda no poder local?
Analisando a teoria do poder local, vendo o poder local como um sistema de relações, o poder local não se resume à administração local, aos serviços da administração municipal e aos titulares dos órgãos eleitos. O poder local é mais o que isso. São os interesses difusos, são interesses de grupo sócio-profissionais, são interesses que procuram influenciar as políticas públicas de forma a saírem beneficiados. E quanto mais o município se organiza, se desenvolve, mais se torna evidente o peso de grupos económicos, grandes empresários, grandes empresas, legítimas, sobretudo em relação ao município que tem determinado terreno, solo, mas este também não é inesgotável. Então, tem que haver muito cuidado com o crescimento urbano de forma a conciliar as funções económicas do terreno com as funções sociais. A cidade, para crescer, não pode fazê-lo unicamente na vertical, tem que se expandir. As funções residenciais têm que ser garantidas. O problema maior que vamos ter nos próximos tempos, que já temos, aliás, é o problema de acesso à habitação. Isso tem que ser analisado com cuidado. Novos serviços e infra-estruturas, também. É necessário ter infra-estruturas sociais e culturais estruturantes, de uma forma descentralizada no território, para criar acesso democrático à cultura. Os grandes eventos culturais não podem ter lugar somente no Plateau, no Palácio da Assembleia Nacional e no Auditório [Jorge Barbosa]. Temos de ter infra-estruturas para acolher grandes eventos na região norte, em Ponta d'Água, São Filipe, Palmarejo. Todo o Palmarejo já é uma cidade dentro da cidade. Temos também que prever a questão da protecção civil. Praia vai ter quase 300 mil habitantes para gerir em 2030 e há apenas um quartel de bombeiros na Fazenda. É inconcebível. Tem que haver uma central de bombeiros moderna para o Palmarejo que apanha toda essa zona. Tem que haver muito cuidado com protecção civil, mas também com toda a zona aeroportuária, que é a zona de maior risco. Está lá a Enacol, está lá o silo do Porto da Praia, está o aeroporto, estão as indústrias com material inflamável, produção de plástico e tudo mais.Tudo isso precisa de terreno, precisa de espaço estruturante. Quanto às infra-estruturas desportivas, é inconcebível que uma cidade como a Praia não tenha uma grande piscina municipal. Temos de ter essas infra-estruturas, polidesportivos para vermos o desporto não só numa perspectiva da saúde, mas também de promoção de carreira, com dimensão económica. Tudo isso precisa de terreno. De grandes terrenos. Então, o que eu chamo a atenção é que aqueles que têm maior poder de barganha podem influenciar as políticas públicas, podem influenciar a alteração de um plano urbanístico, para facilitar a implementação do seu projecto, com efeitos que podem ser desestruturantes para o modelo de vida em toda a envolvente crítica desses investimentos. Toda a gente sabe, não é preciso ir aos livros, aos jornais para a gente perceber isso. É por isso que essa lógica de participação, de empoderar o cidadão no relacionamento com o seu município é a chave para que as coisas funcionem com maior equilíbrio, com maior transparência e um maior controle social e político. Daí a importância da formação cívica dos cidadãos, da educação política democrática dos cidadãos, para compreenderem a essência do poder local e de outros poderes - como funcionam, quais as suas regras-, e não pensarem unicamente no benefício pessoal que tiram de um determinado município, de um determinado serviço. Tem que se olhar o município no conjunto. É uma coisa muito séria, do meu ponto de vista. E às vezes fica-se com a sensação de que o município é tratado como um poder menor. De que é tolerado tudo o que se passa lá, mas esquecem-se que o Estado de Direito Democrático assenta uma estrutura também democrática que são os municípios. E que está mais próxima do seu território. Quanto mais melhorarmos o funcionamento democrático dos municípios, que são um poder político democrático, melhor a nossa democracia. Porque o município tem uma coisa que o governo não tem, que o parlamento não tem. Pensa, prevê, planeia e executa. Quer dizer, a instrumentalização do poder, no bom sentido, é uma coisa imediata. Podemos ter o pior presidente de Câmara do mundo, mas é impossível que não faça algo, uma obra. Porque é da inerência da função da administração. Para terminar, não queremos um presidente só para gerir. Queremos um presidente para desenvolver. Para promover desenvolvimento. O país também não quer exibir-se como campeão de políticas sociais. Política social é para que exista o menor número possível de cabo-verdianos que dependam do auxílio público para ter uma sobrevivência condigna. Isto é que deve ser a nossa basofaria.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.