O sonho da América que vira pesadelo é cíclico

A aventura americana, por muitos percecionada como necessidade vital, é um fenómeno cíclico que acompanha a vida nas ilhas. Mas hoje temos meios para evitar riscos desnecessários que afetam vidas.

Tentar a aventura americana continua. Testemunham-no os casos ouvidos ao longo dos tempos e que dão substância a este artigo. Uma aventura com várias etapas. Muitas vezes quem está em condições de racionalizar a experiência só acompanha uma parte desse percurso, aquela que a seguir se relata:

De tempos a tempos um grito de socorro chega à capital vindo das ilhas. Para acolher um parente, um conhecido em busca de visto ou para outra qualquer situação, em geral relacionada com a necessidade de tentar a aventura americana.

A antiga empregada que tem uma filha de onze anos, cujo pai emigrou para a América e que tendo regularizado a situação, por via de um casamento solidário, quer os filhos todos juntos, os nascidos cá, de várias uniões, e os do casamento lá. Bem se tenta dissuadi-la, fazer ver que pode haver outra solução … — o sonho mesmo insano vence a racionalização. A criança foi, pois. Durante anos nada se sabe dela. Depois um dia, oxalá, possa ser uma história de sucesso.

Da última vez, esta semana, a chamada veio duma outra ilha, também tradicionalmente ligada à aventura americana (veja-se o artigo neste online do dia 18). A antiga colaboradora telefona a pedir ‘uma ajuda’ para o filho poder regressar à América, donde chegou a Cabo Verde ainda este ano.

O adolescente tinha em 2016 ido juntar-se ao pai, ex-polícia que há anos realizara o seu sonho de entrar nos ‘States’. O sonho da América, neste caso, parece até ter começado por realizar-se em Cabo Verde, com o recrutamento numa instituição da primeira potência mundial.

A expulsão do pai levou o ainda adolescente a decidir que viria junto. O que aconteceu para o ex-polícia ser deportado não foi dito. Mas socorrendo-nos das estatísticas, segundo as quais entre os deportados há quem tenha cometido crimes graves e há quem apenas é expulso por ser indocumentado (imigrante ilegal), o otimista e o pessimista, o idealista e o realista que projetem o olhar condicente( sinónimo de condizente). A realidade estará entre os dois extremos?

Não será este o caso entre os 42 deportados (deste ano) que são notícia neste online, na quarta-feira, 18?

Impacto do retorno: fenómeno por estudar

Enquanto o olhar otimista e o olhar pessimista têm perspetivas antonímicas, designadamente sobre a capacidade de abraçar os nossos que foram expulsos do país das oportunidades, outro fenómeno avulta.

A micro-cultura, de que os deportados recentes são agentes, faz-nos interrogar sobre a importância que terá na mudança cultural. Fenómeno por estudar, é no entanto, de pensar que palavras como kasubodi (de: cash or body) ou tag(u)i (de: thug) só existem, e não só a nível linguístico, por força do fenómeno do regresso de ‘expulsos da América’.

A melhor solução

A aventura americana, por muitos percecionada como necessidade vital, é pois um fenómeno cíclico que acompanha a vida nas ilhas. Agora por via aérea, em voos de preços hiperinflacionados, como outrora através do ‘mar das túrbidas ondas” sulcado seja por um vapor seja por um veleiro ‘barca /barka balera’.

Mas hoje temos meios para evitar riscos desnecessários que afetam vidas. Os nossos emigrantes para evitarem a deportação terão de ser regularizados e nesse caso as autoridades, designadamente as diplomáticas no país de emigração, têm uma responsabilidade nada despicienda.

Foto dum Aeroporto Internacional: Mais um "Cais de ver partir" para "melhorar a vida" no regresso — um sonho que exige muito mais trabalho intersectorial na sociedade nacional, mas também em coordenação com governantes em outras sociedades, que são lugares de utopias para os mais despreparados de entre nós. Esses espaços-terra-longe de projeção de sonhos, que para nascerem precisam de obras.