Orla marítima: o filho mal-amado - Alvaro Apolo Pereira

O litoral do país está cada vez mais ameaçado, devido às insustentáveis atividades humanas aí desenvolvidas, acarretando graves deficiências no seu ordenamento e seu especto visual por falta de um harmonioso planeamento, não é agradável e por contrário que pareça totalmente divorciado do mar, enquanto recurso inestimável. De sublinhar que cerca de 80% da população Cabo-verdiana está concentrada nas zonas litorais e que os maiores investimentos económicos, nomeadamente portos, hotéis e indústrias, estão localizados nas zonas costeiras.

Jun 4, 2023 - 10:48
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Orla marítima: o filho mal-amado - Alvaro Apolo Pereira

O litoral do país está cada vez mais ameaçado, devido às insustentáveis atividades humanas aí desenvolvidas, acarretando graves deficiências no seu ordenamento e seu especto visual por falta de um harmonioso planeamento, não é agradável e por contrário que pareça totalmente divorciado do mar, enquanto recurso inestimável. De sublinhar que cerca de 80% da população Cabo-verdiana está concentrada nas zonas litorais e que os maiores investimentos económicos, nomeadamente portos, hotéis e indústrias, estão localizados nas zonas costeiras.

A orla marítima mundial ao longo do processo da civilização sofreu uma dinâmica quanto ao seu uso e ocupação, em virtude das intensas atividades económicas e da concentração populacional.

Devido ao seu uso intensivo ao longo dos seculos, dos benefícios dai resultantes para a saúde, a necessidade de perseveração desse território para a defesa nacional, e seu potencial para a pesca, levou à criação, em muitos países, de um regime de salvaguarda e classificação como domínio público marítimo. A proximidade com o mar torna os espaços litorâneos um território apetecível e estratégico impar, envolvendo aspetos económicos, socioculturais, e ainda para alocação de equipamentos e infraestruturas fundamentais à economia.

Entre a cidade e o mar, ao longo do processo de crescimento urbano, estabeleceu-se uma relação de contínuas trocas. Um método de expansão da cidade era, então, centrado em ganhar amplos territórios sobre a costa. Por outro lado, a emergência de um setor imobiliário disposto a aproveitar as vantagens da urbe “à beira mar” incitou o desenvolvimento da cidade comprimida entre as praias, e montes. Para além destes dois aspetos, a praia significa trabalho e renda para uma parcela importante da população.

Assim, a alta dinâmica ocorrida nessa faixa da zona costeira está associada tanto a processos naturais, como a processos antrópicos que aceleram e potencializam os efeitos da erosão, conferindo à orla peculiaridades que requerem esforços permanentes para manutenção de seu equilíbrio dinâmico.

Orla marítima enquanto , Domínio Público Marítimo (DPM), é um conceito do direito português, estabelecido em 1864, que determina que a faixa em terra da zona costeira (margens, praias, etc.) é propriedade inalienável do Estado, pelo que os privados (pessoas, empresas, etc.) só podem dispor do direito de utilização ou exploração dessa área, e nunca da sua propriedade plena .

A todos aqueles que consigam provar documentalmente que são os legítimos herdeiros/proprietários de algum lote desta área em data anterior a 1864, o Estado reconhece a propriedade, mas isso não a desobriga, ou exclui, do cumprimento das normas que aplicam ao restante Domínio Público Marítimo.

A orla marítima de Cabo Verde é um dos principais ativos do país, constituindo-se num elemento determinante no processo de desenvolvimento das ilhas, uma vez que se aponta o turismo balnear, os transportes marítimos e a pesca como os motores do desenvolvimento do arquipélago. O conceito está legislado através da Lei nº44/VI/2004, de 12-07, que aprovou o regime dos bens do domínio marítimo do Estado que compreende as praias e os terrenos das costas, enseadas, baías contíguas à linha de máxima preia-mar numa faixa de 80 metros de largura.

Cabo Verde, como um país insular, composto por ilhas, apresenta uma geomorfologia de costa diversificada que lhe confere naturalmente um elevado grau de vulnerabilidade face aos eventos climáticos extremos que se produzem, sobretudo, a nível das zonas costeiras baixas do litoral onde se insere a orla marítima e, que aumentam a erosão costeira.

Nessa faixa importante do território coabitam muitas vezes ecossistemas sensíveis ao lado de construções concessionadas sem a existência de planos e ordenamento da orla costeira, pondo em risco os equilíbrios existentes.

Por outro lado, verifica-se um contínuo crescimento turístico ao longo da linha da costa, com uma ausência de um processo de planeamento, que entre em linha de conta com as características e condições anteriormente referidas.

O litoral do país está cada vez mais ameaçado, devido às insustentáveis atividades humanas aí desenvolvidas, acarretando graves deficiências no seu ordenamento e seu especto visual por falta de um harmonioso planeamento, não é agradável e por contrário que pareça totalmente divorciado do mar, enquanto recurso inestimável. De sublinhar que cerca de 80% da população Cabo-verdiana está concentrada nas zonas litorais e que os maiores investimentos económicos, nomeadamente portos, hotéis e indústrias, estão localizados nas zonas costeiras.

Esse crescimento tem levado a uma excessiva exploração de inertes nessa faixa importante e sensível do território com todos os inconvenientes ambientais e paisagísticos daí decorrentes. Muitas vezes, os regulamentos e as ações de conservação nas áreas protegidas ao longo do litoral acabam por ser instrumentos pouco eficazes, dada a perceção de impunidade resultante do incumprimento desses regulamentos e da insuficiente fiscalização.

As ilhas de Cabo Verde constituem dez realidades costeiras, com especificidades diversas, de acordo com a morfologia de cada ilha. A orla marítima é uma faixa do território costeiro frágil, rico pela sua biodiversidade, sujeita a um regime especial, e a grandes pressões antropogénicas. A ex-agência Marítima e Portuária (AMP), e agora a DGEM (Direção Geral da Economia Marítima), ocupa lugar de destaque no conjunto de instituições, com incidência na orla marítima, havendo, no entanto, grande sobreposição de competências e desarticulação entre as mesmas, o que facilita o impacto negativo das infraestruturas sobre essa franja do território.

Mais do que desarticulação e sobreposição de competências, há necessidade urgente da criação de um quadro que defina os papeis de cada um. Vejamos por exemplo no que acontece com a atribuição das concessões na franja de DPM. A ex-AMP muitas vezes emitia concessões sem a devida articulação com as instituições que tem competências em matéria do ordenamento, numa clara atitude que estava a decidir numa franja do “seu território”. Por outro lado, muitas vezes as autarquias licenciavam construções sem estas terem recolhido o parecer prévio da ex-AMP ou do Ambiente.

De facto, são inúmeros os loteamentos e construções nessa faixa, licenciada ou não licenciada, com e sem auscultação da tutela, que têm impactos visuais negativos e impedem a livre circulação e acesso às praias. Há aglomerados urbanos na proximidade excessiva da costa, que têm sentido os efeitos de maré alta ou de ondulações quando passam tempestades tropicais no atlântico.

A par da ocupação residencial, verifica-se a presença de instalações industriais, implantadas tanto em domínio público como numa faixa mais alargada. Em muitos casos fazem a descarga de águas residuais não tratadas diretamente para o mar, não obstante a Direção Geral do Ambiente considerar que a poluição de zonas costeiras não constitui ainda um problema prioritário.

A construção de resorts turísticos constitui uma das maiores ameaças para as tartarugas marinhas no país, evidência corroborada pela Associação Ambientalista Natura 2000. O desenvolvimento turístico costeiro aumentou o nível de ameaça para os animais, na medida em que o acesso às praias é cada vez mais fácil.
A extração de inertes, particularmente de areia, constitui um dos problemas ambientais mais sensíveis e graves da orla marítima cabo-verdiana.

A extração licenciada nem sempre é fiscalizada e, muitas vezes, as empresas aproveitam as lacunas da lei ou dos contratos (em regra não são delimitadas a profundidade e a extensão). Muitas empresas não cumprem as normas e disposições legais impostas durante as várias fases do processo de exploração, entre os quais as obrigações ambientais de recuperação das áreas de exploração.

Por outro lado, a erosão costeira pode trazer diversas consequências, dentre elas, a redução na largura da faixa de areia (praia), perda e desequilíbrio de habitats naturais, aumento na frequência de inundações decorrentes das ressacas, aumento da intrusão salina no aquífero costeiro, destruição de estruturas construídas pelo homem e perda do valor paisagístico, consequentemente, do potencial turístico de uma região.

Sendo Praia a capital do país, e maior polo de desenvolvimento do país, com a maior concentração da população e de infraestruturas, e extensa orla marítima, pressupunha-se estarem criadas as condições para um harmonioso ordenamento do seu território, em particular a orla marítima e assim potenciar o turismo.

A portaria 10117 de 18 de Set de 1971, veio a incluir na área da cidade da Praia os terrenos da faixa marginal marítima dos 80 metros com ela confinantes desde o cais de S. Januário até o Porto de Palmarejo, com o objetivo principal de” promover o desenvolvimento da Praia e incentivo da construção”.

Já em 1965, a Portaria nº 7229, de 6 de março, tinha feito o mesmo relativamente às áreas da Cidade do Mindelo e da povoação da Baía das Gatas, na Ilha de S. Vicente.

A portaria de 1971, veio a baralhar ainda mais sobre quem é quem na gestão da orla marítima da Praia, tendo em conta que terrenos integrados na faixa marginal marítima dos 80 metros sofrem a desafetação do domínio público e passam a ser classificados como terrenos incluídos na Cidade da Praia e, portanto, pertencentes ao Município. A citada inclusão fez transitar diretamente, e a um só tempo, os terrenos do domínio público marítimo do Estado para o domínio privado do Município da Praia. A referida lei deveria ter regulado expressamente a situação dos terrenos da faixa marginal marítima dos 80 metros integrados em 1971 na área da Cidade da Praia, e, em 1965, na área da Cidade do Mindelo e na área da povoação da Baía das Gatas.

A autarquia da Praia considera que ainda está atual a licença de construções muitas vezes sem previa audição da tutela do domínio público marítimo, e sem respeitar os regimes de salvaguarda, que só poderiam ser garantidos por planos de ordenamento da orla costeira. É urgente a clarificação da eficácia dessa portaria junto do Tribunal Constitucional e reafectação dessa faixa do território para o Estado, evitando se a proliferação de construções na orla marítima da Praia e mutas vezes sem passar pelo licenciamento da autoridade marítima.

Em Cabo Verde a situação é ainda preocupante, face à não regulamentação da lei do domínio publico marítimo, indefinição da entidade tutelar e de um modelo coerente de governança, entre outos. Há ainda a necessidade de adaptação da dinâmica humana à dinâmica costeira atual e futura o que só será possível mediante um grande esforço, partilhado pelas instituições públicas. Em relação as concessões, a Lei nº44/VI/2004, não define uma quota de ocupação do domínio publico marítimo (DPM). Da visita a alguns troços do litoral da Boa Vista e mesmo de Santiago é notório que as concessões são atribuídas casuisticamente pela forma como estão implantadas no terreno, com zonas onde há uma aglomeração quase exagerada de construções. A nosso ver, a orla marítima tem tendência a perder o seu caracter de domino publico marítimo. Por outro lado, nota -se que a orla é analisada de forma abstrata e toda essa diversa legislação trata esse território de forma homogénea não entrando na necessidade de uma análise e tipificação dos diversos regimes dos solos na mesma faixa.

Por outro lado, a Polícia Marítima afigura-se como um dos serviços- pilar de fiscalização do sector marítimo e portuário ou áreas de jurisdição marítima, e na orla em particular. O Decreto Legislativo nº 6/2005, de 14 de Novembro, que cria a Policia Nacional nos seus Artigo 8º, alínea c) e 19º nº1, integra a Polícia Marítima com todas as suas competências, direitos e regalias previstas nas leis anteriores. Todavia com a sua integração na PN, ela perdeu autonomia, padecendo ainda de enorme falta de meios para cabal exercício das suas funções.

Procedeu-se á analise do regime tutelar da orla marítima e esta tem transitado do IMP para a AMP, e com a extinção desta e novamente com a recriação do IMP, mas agora sem a gestão da orla marítima que passou desde 2018 para a DGEM. Uma autentica “dança” de tutelas e uma de espécie de filho mal-amado. Em consequência continua a haver uma gestão numa perspetiva redutora, apenas centrado na autorização das concessões, de forma casuística e não enquadrado em planeamento da orla.

A almejada clarificação da titularidade das construções na faixa da orla marítima deveria ser antecipada com o cadastramento em todas as ilhas.

Para aprofundar o conceito de orla marítima enquanto DPM, parece-nos pertinente debruçar-se em torno de dois elementos. Primeiro, sua consistência e seu significado no imaginário das pessoas. O decreto régio de D. Luís, em 1864 que introduz o conceito, pretendeu salvaguardar a defesa da nação de eventuais invasões por mar, assim como as atividades pesqueiras, numa altura em que era escassa a ocupação urbana do litoral. Com o passar dos tempos e face a pressão antropogénica junto ao litoral, podemos questionar se a servidão com os limites atuais continua a fazer sentido? Todo o sentido.!

O domínio marítimo público não parece estar congelado no tempo, principalmente devido ao aumento do nível do mar e à erosão costeira. Em vários países, surge a questão do futuro das infraestruturas atualmente afetadas pelas marés mais altas.
Face ao exposto e não só para salvaguarda dos valores ambientais, valor histórico, e como corredor para acesso a defesa, recursos pesqueiros, proteção dos recursos naturais e da biodiversidade a par de garantir a segurança das populações ribeirinhas, tudo conjugado com o fomento económico, pensamos que continua a ter sentido manter a orla marítima como servidão. A nova abordagem deveria colocar o enfoque num regime de salvaguarda dos recursos existente e a preservar no interior da mesma e reforçando a vertente de proteção dos valores e serviços ambientais que oferece, seja para condicionar e fiscalizar os tipos de uso, implementar obras hidráulicas ou para fruição pública e não tanto a questão da titularidade.

Recomendamos, entre outros, a criação de um Comité de Pilotagem com a seguinte composição: técnicos do INGT; DGEM, Ambiente; IMP; Autarquia local onde se situa a pretensão do requerente e um membro da sociedade civil. A função seria analisar conjuntamente os pedidos de concessão de terrenos.

Torna -se urgente a clarificação sobre a possível revogação das portarias 10117 de 1971 e 7229 de 1965 que delega a gestão das orlas das cidades da Praia e do Mindelo para as respetivas câmaras. Com efeito, a Constituição refere que a orla marítima é do Estado. Por outro lado, a lei dos solos no seu artº91 revoga esses dispositivos legais. Mesmo assim, é polémica a opinião dos juristas sobre a eficácia das mesmas portarias. Recommenda-se ainda a revisão da lei 44/VI/2004, que nunca chegou a ser regulamentada e a criação de um Conselho Nacional para a Orla Marítima e que finalmente os notários e/ou os conservadores devem alertar os cidadãos acerca da eventual nulidade (ainda que parcial) de tais negócios e consequentes registos, face a dificuldade na obtenção de todas as provas quanto à titularidade dos terrenos.

Praia, Maio de 2023