Os Pregos da Ilha Brava

O silêncio na Brava não é a ausência de som. É matéria-prima. Ingrediente. Cozinha-se o silêncio antes de te dizerem que és bem-vindo. E mesmo que nunca o digam, nada te faltará.

Feb 13, 2025 - 03:02
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Os Pregos da Ilha Brava
Visitei a ilha há dois anos. Tinham-me avisado: a Brava é um lugar onde o tempo não anda, onde os dias não se medem, onde a pressa é uma ofensa e a urgência um capricho. Tudo ali parece suspenso, como se o próprio mundo tivesse decidido pousar um instante e ficar. Um tempo imóvel e teimoso, que se recusa a obedecer ao relógio ou aos conselhos do sistema internacional de algum deus impoluto.
Fui a trabalho. Um evento literário, uma semana inteira de visitas às instituições do Estado e, no meio disso, a escola. O liceu. A sala cheia de alunos com olhos de perguntas e uma sede que não se mata com livros nem com promessas. Queriam saber sobre literatura, sobre o que significa escrever, sobre o que vale a pena dizer antes que a morte nos interrompa. "Escrevo para não morrer", diz a velha ladainha. "Escrevo para não ficar louco", acrescenta Anilton Levy. Mas o que me fez ganhar o dia foi uma aluna que se levantou e recitou um poema sobre a ilha.
Falava da Brava como quem fala de um amor antigo e indomável. De um lugar onde não se parte, mas se esgota. Da vontade de chegar à América, não como os cubanos ou os mexicanos, a fugir. Mas como quem parte por destino, por fado. No poema dela, quem sai leva as flores, os cheiros e as saudades. Fiquei a pensar se essa gente já dobrou as suas lutas até à dobra do cansaço, ou se ainda dobra os sonhos, esticando-os até à última esperança.
Eugénio Tavares sabia disso. Cantou a ilha em mornas e versos que enredam saudade, mulher, amor e o destino malfadado de um povo. Aqui, até as árvores dançam com o vento e, um dia, tombam. Como nós. Como folhas secas. Talvez por isso a sua obra deveria se chamar Folhas Caídas.
O mar que separa a Brava do resto do mundo tem as suas razões para estar zangado. Acha que as pessoas deviam ficar. Mas elas insistem em ir. Então, revolta-se. As ondas fazem do barco um brinquedo e quem atravessa aquelas águas já não precisa de missa nem de bruxo: ali qualquer um vê o seu demónio antes da morte. O coração bate descompassado, o estômago revira e a comida trazida da cidade da Praia agradece a instabilidade. As mãos agarram-se onde podem, fincam-se como pregos. Como o frio da ilha que dorme nas casas e nas folhas, e de manhã chora o desespero em gotas límpidas. Em outras ocasiões, é em qualquer fresta que impeça a queda.
E depois, a chegada. Nova Sintra. Mais abaixo, o barco pequeno, que de pequeno só tem o nome. O barco que transporta os doentes para fora da ilha. Porque estamos sempre a fugir de alguma coisa. À força ou por necessidade. E a Brava, às vezes, é uma vaidade. Estar lá.
E, na despedida, Dona Tututa, a de bunda branca, ergue-se sobre as águas como um fantasma. Vigia quem chega. Saúda quem parte. Para os que vêm pela primeira vez, a ilha das flores mostra-se inteira, intensa, altiva. Para os que voltam, a Brava parece olhar de soslaio, perguntando baixinho: “Outra vez?”
As casas da Brava lembram vilas lusitanas. Mas a maioria está vazia. Algumas resistem, orgulhosas e prontas para serem habitadas. Outras são sombras de si mesmas, negras de abandono. Lembro-me de um poema de Craveirinha:
"Sou alcatrão, patrão. Sou carvão."
Na Brava, as casas vazias não são apenas casas. São esqueletos de memória. São poemas que o vento geme, como uma geada antiga, como um beijo que nunca veio.
Foi lá que conheci um professor que aleijou os seus desejos em troca de ficar preso àquelas rochas. Do outro lado da ilha, só se ouve a raiva do oceano a zimbrar contra os penhascos. Num calor de julho, entre o silêncio e o sussurro, confidenciou-me:
— Fiquei para trás. Sou gestor do polo desde que cheguei aqui na década passada. Nunca conheci um ministro que tivesse vindo a esta escola. Dá-lhes recado quando chegares. Diz-lhes que abortei os meus sonhos em favor dos alunos que querem ir para a América e eu não os tenho deixado. Mas a canela do oceano é muito mais longa e deliciosa, e as curvas daqui já são ainda amais decoradas, pero sempre.
E há as dobras. Noventa e nove, dizem. Construídas pelas mãos dos homens e de Deus. Mas não bastam. Noventa e nove curvas não impedem que a ilha se esvazie. Não travam a derrocada demográfica.
Brava. Nome de ilha. Nome de gente.
Brava é a arma que agrava.
Autor: Mário Loff
Chegou a conhecimento atraves da Divah Burgo