Proposta de lei para modernizar a lei orgânica do Banco de Cabo Verde, desafios e contradições, uma análise do Ex-Governador Carlos Burgo
Recentemente, teve-se acesso à proposta de atualização da Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde (BCV), um documento que visa modernizar o quadro regulador e operacional do Banco Central, que, ao longo de mais de duas décadas, manteve-se sem alterações significativas.
A proposta surge em um momento em que a evolução na supervisão das instituições financeiras e o reforço do papel do BCV como supervisor exigem uma adaptação das suas funções. A legislação em vigor remonta a 2002, ano em que a Lei Orgânica foi aprovada, e, nesse período, diversas mudanças ocorreram no sistema financeiro cabo-verdiano, incluindo a aprovação da Lei das Instituições e Atividades Financeiras, em 2014, que teve como objetivo reforçar o papel do supervisor financeiro no país.
Um dos pontos centrais da proposta de revisão é o fortalecimento da autonomia e da transparência do BCV. A autonomia dos bancos centrais é um princípio fundamental para assegurar que suas políticas sejam adotadas sem pressões políticas e possam ser focadas no interesse público, com a principal responsabilidade de garantir a estabilidade da moeda e do sistema financeiro. Nesse sentido, a proposta de lei enfatiza a necessidade de garantir que a capitalização do BCV, feita pelo Estado, seja cada vez mais automática, evitando atrasos e garantindo que o banco tenha os recursos necessários para realizar suas funções adequadamente.
Atualmente, a legislação vigente estabelece que o BCV deve ser capitalizado dentro de 60 dias após comunicar ao Governo a insuficiência de capitais próprios. O problema, no entanto, não reside na lei em si, mas na sua implementação. Nos últimos anos, o BCV tem operado com um déficit de capital que, segundo as últimas informações disponíveis, atingiu cerca de 1,6 milhões de contos em setembro de 2024. Essa situação ilustra uma lacuna crítica entre o que está estipulado na legislação e o cumprimento efetivo dessas obrigações. A ausência de ação por parte do Governo e da administração do BCV tem gerado frustração, dando a impressão de que as leis existem mais para ser ignoradas do que para serem cumpridas.
Outro ponto de destaque na proposta é a questão da transparência financeira. A proposta sugere a abolição da obrigação do BCV de publicar mensalmente a sua situação financeira e patrimonial, uma prática atualmente exigida pela Lei Orgânica em vigor. Esta obrigação tem sido um importante instrumento de fiscalização, permitindo que o Ministério das Finanças acompanhe as condições financeiras do banco e que o público tenha acesso a informações cruciais sobre a sua saúde financeira. Com a eliminação dessa exigência, muitos veem o retrocesso como um grave risco para a transparência das operações do banco central, o que pode enfraquecer a confiança pública na gestão do BCV.
A decisão de suprimir a publicação dessas informações não ocorre de forma isolada. Nos últimos anos, tem-se notado uma postura menos rígida do Governo em relação ao cumprimento dessa obrigação. A falta de comprometimento com a divulgação das informações financeiras mensais tem alimentado especulações e preocupações, especialmente em relação à descoberta de transações irregulares, como as que envolviam o Tesouro, e que foram detectadas precisamente por meio da publicação dos balancetes mensais. Essas transações, que foram consideradas irregulares e até ilegais, resultaram em reversões por parte da administração do BCV após pressão pública e internacional, particularmente do FMI. No entanto, o grande problema é que, até hoje, os memorandos que detalham essas transações nunca foram tornados públicos.
O Desafio da Implementação e a Credibilidade das Reformas
A proposta de modernização da Lei Orgânica do BCV, embora bem-intencionada, levanta questões importantes sobre a implementação de reformas e a eficácia das leis no país. O caráter técnico e abrangente da proposta sugere uma tentativa de adaptação do BCV às novas exigências da supervisão financeira internacional, mas a falta de cumprimento de obrigações passadas e a possível fragilidade da transparência sugerem que o país precisa primeiro dar um passo atrás para garantir que as leis existentes sejam efetivamente cumpridas.
A crítica à falta de ação no cumprimento da Lei atual não é apenas uma questão de conformidade técnica, mas de uma preocupação mais ampla com a eficácia do sistema financeiro e a confiança nas instituições que governam a política monetária e financeira do país. Sem uma verdadeira implementação das reformas, qualquer mudança legislativa será vista apenas como mais uma tentativa sem concretização, comprometendo a credibilidade do BCV e do sistema financeiro em Cabo Verde.
O caminho para a modernização da Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde é um processo necessário e urgente, dada a evolução do sistema financeiro e a necessidade de fortalecer a autonomia do banco central. Contudo, a proposta, apesar de seus méritos, traz consigo desafios significativos, especialmente em relação à transparência e à efetividade das reformas. O compromisso com a implementação e o cumprimento das leis, aliando-se à criação de um ambiente de maior transparência e fiscalização, será fundamental para que as mudanças propostas possam, de fato, resultar em um sistema financeiro mais robusto e confiável para o país. A sociedade e os agentes financeiros terão que acompanhar de perto os desenvolvimentos dessa proposta, pressionando por uma execução que não apenas atenda às exigências legais, mas também construa a confiança necessária para o crescimento económico sustentável de Cabo Verde.