Regionalizar o quê e para quê?
“O Governo promoverá iniciativas com vista uma visão integrada das regiões que promova e reforce a coesão territorial sustentada por projetos integradores das complementaridades, projetos regionais de carácter socio-económico e ambiental e demais com incidência na qualidade de vida como sejam a saúde, educação, segurança, mobilidade regional e outros.
“O Governo promoverá iniciativas com vista uma visão integrada das regiões que promova e reforce a coesão territorial sustentada por projetos integradores das complementaridades, projetos regionais de carácter socio-económico e ambiental e demais com incidência na qualidade de vida como sejam a saúde, educação, segurança, mobilidade regional e outros.
Trata-se de um processo que implicará a identificação de pólos de desenvolvimento regional e local, a integração dos instrumentos de políticas com base territorial, a qualificação dos recursos humanos, o desenvolvimento de uma rede de núcleos de povoamento com pólos de competências especializadas”, In Programa do Governo 2006 – 2011
Tivesse sido feito o que constava do programa de governo de 2006-2011, muito do que se discute hoje não teria cabimento. Estaríamos a falar, certamente, de outras coisas ou então de melhorar e aperfeiçoar o que foi então feito de menos bem.
Nesse programa, encontramos expostas, de forma exaustiva, as bases para uma boa regionalização. Os seus ingredientes essenciais foram identificados e teoricamente desenvolvidos, visando a emergência de regiões e centros polarizadores, que, uma vez consolidados, poderiam permitir a criação de órgãos administrativos eleitos. A eleição de órgão regionais seria o culminar de um processo e não o seu início.
Simplesmente do que foi citado do programa do governo de então, nada, absolutamente nada, se fez.
Um governo do PAICV teve a sua chance de regionalizar o país, sem criar regiões administrativas, e não o fez.
Razões para o incumprimento dessa parte do programa de governo desconhecemos, mas, uma coisa se sabe, perdeu-se uma oportunidade histórica de se fazer o que tinha e terá de ser feito.
É assim, em Cabo Verde: muitas boas intenções jazem no esquecimento ou muitas criações ficam pelo simples ato de nascer.
E estamos condenados a conviver com essa sina crioula?
Acredito e espero, piamente, que não.
Já tinha dito algures que não sou grande e fervoroso adepto da regionalização, ou melhor, desta regionalização.
Também já tinha dito algures que sou a favor de políticas de descentralização, de desenvolvimento do território e de seu ordenamento e de desenvolvimento regional, desde que devidamente enquadradas e inseridas numa lógica de complementaridade e subsidiariedade, cuja implantação deve ser feita com cuidado, com tempo necessário e com uma configuração que atenda as vicissitudes de cada território regionalizado.
Não sou adepto da ideia de se criar as regiões, como se criaram as cidades entre nós, sem um plano de seu desenvolvimento e sem algumas premissas básicas que uma cidade deve conter.
E ter uma cidade polarizadora e com competências especializadas, em vários domínios, constitui o núcleo central para uma boa regionalização.
Das cidades com alguma vocação polarizadora conhecemos, e o plano para as demais, desconhecemos.
Curioso é que, em 2005, foi criado, de forma arbitrária e demagógica, um conjunto de 5 novos municípios, decisão que veio contribuir para a existência de um total de 22 municípios no país. A curiosidade dessa solução reside no fato de, passados pouco mais de 5 anos, se ter produzido uma lei (Lei 72/VII/2010) que veio condicionar, de forma exemplar, a criação de novos municípios. A alínea a) do nº 2 do artigo 7º desta lei diz taxativamente que a criação de novos municípios está condicionada a “Estudo elaborado por entidade idónea, independente, conclusivo e demonstrativo da viabilidade e capacidade de nova Autarquia Local, em termos de recursos organizacionais, humanos, materiais e financeiros para assumir com eficácia as atribuições respetivas…”
Não poderia deixar de estar, totalmente, de acordo com esta formulação e com a exigência que ela insira. O meu desencanto surge quando verifico que esse normativo não é aplicável no caso da criação de regiões.
E por que será?
A região será uma categoria inferior e menos complexa do que o município?
O legislador lá saberá porque optou por esta solução.
Alguns entendidos, em matéria de regionalização, afirmam que um dos requisitos essenciais para uma boa regionalização é a existência de um municipalismo forte, competente e que cumpra com o essencial do seu papel.
E será que entre nós esse fator decisivo já é um dado adquirido, para que se possa avançar para a criação de um outro nível de poder autárquico sem sobressaltos?
Digo logo, e com toda a sinceridade, que não!
O nosso municipalismo carece e padece de muitas insuficiências quer a nível de capacidade política, quer a nível de gestão e capacidade técnica e quer, ainda, a nível de capital humano. Os nossos municípios, em muitos casos, limitam-se, em termos de exercício real de poder, ao todo poderoso presidente de câmara. Ou seja, é o presidente de câmara e o resto, o que não é, de todo, desejável quando se pretende ter alicerces sólidos para a construção de outros níveis de poder e de o colocar mais perto das populações.
E não prevejo que o destino das regiões seja diferente. Vão padecer dos mesmos sintomas e males que os municípios e as cidades já existentes, com exceção de 3 ou 4 municípios que já detêm alguma base fiscal.
Num país onde os recursos humanos, dotados de conhecimento no domínio da gestão administrativa, autárquica e política, escasseiam, que garantia poderemos ter que os órgãos eleitos nas 10 regiões, a serem criadas, irão assegurar uma gestão competente e uma governance de alto nível?
A meu ver, não há garantia nenhuma, e há um risco real de, em algumas regiões, os seus órgãos eleitos terem menor capacidade técnica e política de que órgãos eleitos de alguns municípios. E se isso acontecer, poderá ser fator de perturbação, fonte de conflitualidade potencial e de dessincronia funcional.
Ter regiões só por ter, poderemos, certamente, os ter. Como temos vários municípios e cidades, apenas, de nomes e pouco mais.
E é isso (ou será isso) que pretendemos para as regiões?
Estou convencido que não!
Escrevia eu, em 2002, no desaparecido jornal Horizonte, o que cito a seguir: “Na realidade, só deve regionalizar quem pode, e Cabo Verde, sem um sólido municipalismo, não pode. Não pode porque corre o risco de corromper a regionalização com a mesma doença do municipalismo: a do estado-dependência. Patologia essa que alargada às regiões poderia criar um insustentável peso burocrático, e sobretudo, um complicado problema financeiro”.
Continuo, hoje, a pensar da mesma forma, exatamente no momento em que decorre a discussão da proposta de lei sobre a regionalização no parlamento, agora mais convencido do que outrora.
Para se construir uma casa de 3 andares, é necessário assegurar-se que a fundação edificada suportará os 3 pisos projetados, para que haja necessária segurança e a indispensável estabilidade.
E não vejo essa preocupação nos que defendem mais um piso.
Não vislumbro um plano de desenvolvimento das regiões a curto, médio e longo prazos, com um desenho claro do que elas serão daqui a 20 ou 30 anos. Nem tão pouco um quadro de referência do que serão as suas economias, as suas especialidades e as complementaridades associadas.
A regionalizar a pressa, sem planificação, e sem consenso político e social, é meio caminho andado para o insucesso. E isso é um ónus que ninguém, com o mínimo de senso, quererá arcar, e o país, me parece, também dispensar essa prenda envenenada.
Do debate na especialidade ocorrido na Assembleia Nacional pude perceber que:
a) Existe um consenso teórico sobre a regionalização. Todos os atores declaram-se favoráveis à regionalização;
b) Não há consenso quanto a forma de o fazer. O debate revelou posições díspares relativamente a forma de se avançar para a regionalização, havendo partidos que defendem a regionalização no âmbito de uma reforma ampla do Estado, abarcando o parlamento, a administração central, incluindo o governo e a administração municipal; enquanto outros defendem a sua criação já, admitindo que as reformas outras sejam levadas a cabo posteriormente;
c) Foi visível a ausência de consenso em relação a solução contida na proposta em debate quanto a municípios-ilha, em que o território da região é coincidente com o do município.
d) A discussão havida a nível da chamada comissão paritária não alcançou o nível da maturação desejável, e as visíveis divergências registadas na plenária são demonstrativas dessa ausência de amadurecimento e consenso em matérias chaves.
O adiamento do debate na especialidade, para uma outra sessão parlamentar, poderá constituir-se numa ótima oportunidade para os partidos se porem de acordo, e evitarem os erros que foram evidenciados nesta sessão.
Afinal o que andaram a fazer ou a negociar durante todo esse tempo na dita comissão paritária? A meu ver, a proposta só deveria subir a plenária para aprovação, tendo sido ultrapassadas todas as divergências, em especial aquelas de fundo.
Transferir para a plenária a discussão dos dissensos é, simplesmente, perda de tempo.
Ademais, não é aceitável que as negociações na comissão paritária se façam entre os partidos, e que na plenária, em situações de não acordo, se vote com os dissidentes para se fazer a maioria necessária. Essa estratégia não favorece o diálogo franco e aberto, e nem favorece a criação de um ambiente de confiança entre as partes.
Não sei se ao MpD, lhe serve o esfrangalhamento da oposição e o seu máximo enfraquecimento, mas ao país e à democracia, estou convencido, que isso não convém.