REPORTAGEM/Brava: Resiliência, paixão, necessidade de se empoderar e os desafios da mulher na prática do pastoreio
O pastoreio e a venda de queijo têm sido desde os primórdios um meio de subsistência e do empoderamento da maioria das mulheres de Cachaço, que mesmo perante diversas dificuldades impostas pelas mudanças climáticas ainda insistem.
O pastoreio e a venda de queijo têm sido desde os primórdios um meio de subsistência e do empoderamento da maioria das mulheres de Cachaço, que mesmo perante diversas dificuldades impostas pelas mudanças climáticas ainda insistem.
A Inforpress foi até a comunidade, que fica a cerca de 12 quilómetros da cidade de Nova Sintra, conhecer a história de algumas dessas mulheres.
Maria Mendes, 58 anos, nasceu, cresceu e reside na localidade e considerou que esta prática é como uma “herança familiar” e sempre foi uma forma de garantir o sustento da família, no pastoreio ou na agricultura de sequeiro.
A comunidade de Cachaço, conforme a mesma fonte, tem este “desígnio” natural, onde as pessoas ou têm que se dedicar ao pastoreio e a prática da agricultura de sequeiro, ou então procurar trabalho nas obras em outras localidades, pois a zona onde vivem é uma das “menos afortunadas” na ilha a nível de oportunidades.
“A criação de animais na minha família e em muitas desta localidade é como se fosse uma herança”, considerou, explicando que quando nasceu encontrou os pais neste estilo de vida, também herdado dos seus antepassados e ela mesmo, depois de constituir a sua família, deu continuidade a este “legado” que também foi passado aos seus filhos.
Contou que teve “a sorte” de estudar até ao 4º ano e dos seus cinco filhos somente dois tiveram a oportunidade de concluir o Ensino Secundário, mas que de “nada” serviu-lhes, pois não conseguiram dar continuidade aos estudos e o 12º ano não deu para cortarem esta “tradição familiar”.
Estes também se têm dedicado à prática do pastoreio, além de trabalharem em obras como ajudantes.
“Esta é uma vida difícil e sacrificada, porque são quilómetros e mais quilómetros que percorremos diariamente atrás do sustento da família e dos filhos, mas as consequências são várias e hoje, mais do que nunca não compensa tanto esforço”, anunciou, sublinhando que antigamente a criação de gado e a agricultura, mesmo a de sequeiro, apresentavam rendimentos, mas que hoje “as coisas estão a ficar cada vez mais complicadas”.
Recordou que o que a levou a se dedicar a esta profissão, que é uma das actividades económicas “mais importantes” na economia da Brava, foi, além de dar continuidade ao legado familiar, a necessidade de ter uma fonte de rendimento e de ser “dona de si”, o que conseguiu.
Conforme explicou, tinha na sua posse dezenas e mais dezenas de cabeças de gado, tinha leite suficiente e conseguia produzir queijo que vendia. Com o lucro dessas actividades conseguiu sustentar os filhos, educá-los até onde foi possível e juntamente com o parceiro construir uma casa.
Hoje, com os consecutivos anos de seca, a falta de água, pasto, e com o aumento do preço das rações só tem algumas cabeças de cabra, que não chegam a 20, mas continua “firme”, pois é algo que gosta de fazer
Para manter a produção de uma quantidade razoável de queijo, sintetizou, é obrigada a comprar leite noutros criadores.
Quanto ao pasto, realçou que este ano o cenário é “um pouco diferente” e, na questão da água, há uma cisterna onde conservam a água das chuvas para dar aos animais, mas os cães vadios “têm dizimado e muito” o gado nesta zona.
E mesmo a produção de queijo, conforme avançou, não traz nenhum benefício, pois, segundo Maria Mendes, um litro de leite custa 90 escudos e para produzir um queijo que vende a 120 escudos somente um litro não é suficiente, mostrando dessa forma que o que a move neste momento é a “paixão e a necessidade de continuar a se sentir empoderada”.
Ainda, reforçou que na época em que os alunos se encontram de férias vê-se na obrigação de andar todo o caminho a pé, às vezes até Nossa Senhora do Monte, ou muitas vezes até Nova Sintra, caso não encontre carro, pois se não há alunos o transporte para Cachaço é “muito deficitário”.
Sobre os terrenos que cultiva deixou claro que são de terceiros e está consciente que a qualquer hora podem pedi-los de volta porque ela não possui terreno próprio.
Nesta senda da “herança”, encontramos Celeste Coelho, que nasceu e cresceu nesta situação, e, mesmo depois de ter a sua família, continuou a pastorear.
Mas os seus filhos não quiseram enveredar por este caminho, justificando assim o facto de todos os seus três filhos serem hoje licenciados e empregados.
À semelhança destas duas mulheres, existem outras na comunidade e em outras zonas da ilha que se dedicam à criação de gado e à prática da agricultura de sequeiro, pois quem não consegue ou não teve a sorte de estudar para ter uma profissão em outra área, ou dedica-se ao sector da construção civil ou ao empreendedorismo,
Ou então sente-se “obrigado” a trilhar os caminhos da emigração, e se não tiver a “sorte” em nenhuma dessas actividades acaba por enveredar no caminho do pastoreio.
Em 2020, com um investimento do Ministério da Agricultura e Ambiente, através de um financiamento do parceiro Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) para o Programa Poser foram construídos cinco currais para “promover” investimentos, para que os criadores passassem a dispor de melhores infra-estruturas de apoio para a actividade de pecuária, uma actividade económica.
Face às mudanças climáticas, a Associação de Conservação da Biodiversidade Biflores está a implementar um projecto pioneiro sobre o “pastoreio sustentável para plantas e meios de subsistência”, um projecto que, conforme explicou o director, Dheeraj Jayant, é apoiado pela organização internacional de conservação da biodiversidade ‘Fauna and Flora’ e financiado pela Darwin Initiative, do governo do Reino Unido.
O projecto tem como objectivo principal garantir que a população da Brava, com o apoio de instituições governamentais e não governamentais, implemente estratégias sustentáveis e orientadas por dados de pastoreio e gestão de terras que protejam as espécies endémicas, melhorem os meios de subsistência e aumentem a resistência local às mudanças climáticas.
“No sector de criação de gado, observa-se uma divisão de trabalho por género, pois as mulheres representam menos de 20 por cento (%) dos pastores”, indicou, realçando que as mulheres são responsáveis pela maior parte dos aspectos de transformação e comercialização da produção de carne e laticínios.
A transição do pastoreio descontrolado para o sustentável, segundo Dheeraj Jayant, pode causar impactos positivos e significativos na unidade primária da sociedade, neste caso a família.
Inforpress